Tuesday, June 5, 2018

Eleanor Marx-Aveling Karl Marx (Notas Dispersas) MFP Brasil

  Eleanor Marx-Aveling Karl Marx (Notas Dispersas)

Como parte das celebrações dos 200 anos do grande Karl Marx publicamos a seguir o texto Karl Marx (notas dispersas) de Eleanor Marx-Aveling. 
Tradução feita por nós do texto retirado de: Como era Carlos Marx, Visto por quienes lo conocieron (Seleccion de textos), compilação publicada digitalmente, sem data, com o selo editorial de Omegalfa.es, disponível em: <https://omegalfa.es/downloadfile.php?file=libros/como.era.carlos.marx.pdf> Acesso em: 02 de jun. 2018.

Eleanor Marx-Aveling

Karl Marx (Notas Dispersas)

Meus amigos austríacos me pedem que lhes envie algumas recordações de meu pai. Não poderiam ter me pedido nada mais difícil. Mas os homens e mulheres da Áustria estão realizando uma luta tao esplêndida pela pela causa em favor a qual viveu e trabalhou Karl Marx, que não é possível negar. E por isto tratarei de enviar-lhes algumas notas dispersas e desorganizadas acerca de meu pai.
Muitas histórias se tem contado sobre Karl Marx, sobre seus “milhões” (em libras esterlinas, evidentemente, já que não podia ser moeda de menor denominação), até um subsídio pago por Bismarck, que supostamente o visitava constantemente em Berlim nos dias da Internacional (!). Mas, afinal de contas, para aqueles que conheciam Karl Marx, nenhuma lenda é mais divertida do que a difundida que o retrata como um homem rabugento, amargo, inflexível e inacessível, uma espécie de Júpiter Trovejante, sempre lançando trovões, incapaz de um sorriso indiferente e solitário no Olimpo. Este retrato do ser mais feliz e alegre que já existiu, de um homem cheio de bom humor, cuja risada calorosa era contagiante e irresistível, do mais gentil e generoso dos companheiros é algo que nunca deixa de surpreender - e divertir - quem o conhecia.
Em sua vida doméstica, assim como nas relações com seus amigos e até mesmo com os simples conhecidos, acho que se poderia dizer que as principais características de Karl Marx eram seu bom humor duradouro e sua generosidade sem limites. Sua bondade e paciência eram verdadeiramente sublimes. Um homem de temperamento menos gentil teria se desesperado das constantes interrupções, das contínuas exigências que recebia de todos os tipos de pessoas. Que um refugiado da Comuna - um homem terrivelmente monótono, a propósito - que mantivera Marx por três horas mortais, quando finalmente lhe foi dito que o tempo era urgente e que ainda havia muito trabalho a ser feito, responderia: "Mon cher Marx, je vous excuse1" é característico da cortesia e bondade de Marx.
O mesmo com aquele aborrecido senhor, com qualquer homem ou mulher que ele acreditasse ser honesto (e ele emprestou seu precioso tempo a muitos que, infelizmente, abusaram de sua generosidade), Marx sempre foi o mais amável e gentil dos homens. Sua capacidade de "atrair" pessoas, fazê-las sentir que ele estava interessado nelas era maravilhosa.
Eu ouvi, de homens das mais diversas ideias e posições, de sua capacidade peculiar de entendê-los e entender suas posições. Quando ele acreditava que alguém era realmente honesto, sua paciência era ilimitada. Nenhuma pergunta parecia muito trivial e nenhum argumento infantil demais para uma discussão séria. Seu tempo e vasto conhecimento estavam sempre a serviço de qualquer homem ou mulher que estivesse ansioso por aprender.
Mas foi em seu relacionamento com as crianças que Marx talvez fosse mais encantador. Não houve companheiro mais agradável para as crianças. A memória mais antiga que tenho dele data dos meus três anos de idade, e "Mohr" (tenho que usar o velho apelido familiar) me carregou nos ombros em volta do nosso pequeno jardim em Grafton Terrace, colocando flores no meu cabelo castanho.
Mohr era, na opinião de todos nós, um cavalo esplêndido. Antes - eu não me lembro daqueles dias, mas eles me disseram - minhas irmãs e meu irmão mais novo - cuja morte logo após meu nascimento foi uma dor ao longo da vida para meus pais - "suportou" Mohr, amarrado a algumas cadeiras aqueles que "montaram" e que ele teve que arrastar ... Pessoalmente, talvez porque ele não tinha irmãs da minha idade, preferiu Mohr como um cavalo de equitação. Sentado em seus ombros, segurando a grande cabeleira, negra na época, com um pouco de cinza, me dava magníficos passeios pelo nosso pequeno jardim e pela terra - agora construída - que rodeava nossa casa em Grafton Terrace. Eu devo dizer algo sobre o nome de "Mohr". Na casa todos nós tínhamos apelidos. (Os leitorres de O Capital sabem o hábil que era Marx para colocar nomes.) "Mohr" era o nome habitual, quase oficial, pelo que Marx era chamado, não só por nós, senão também por todos os amigos mais íntimos. Mas também era nosso “Challey” (suponho que se tratava, originalmente, de uma corrupção de Charley) e nosso “Old Nick”. Minha mae era sempre nossa “Mohme”. Nossa velha amiga Héléne Demuth – amiga de toda a vida de meus pais – se converteu depois de passar por uma série de nomes em “Nym”. Engels, depois de 1870, era nosso “General”. Uma amiga muito íntima – Lina Scholer – nossa “Old Mole”. Minha irmã Jenny era “Qui Qui, imperador da China” e “Di”. Minha irmã Laura (a esposa de Lafargue) era “o Hotentote” e Kakadou”. Eu era “Tussy” - apelido que tenho conservado - “Quo Quo, Sucessor do imperador da China”, e , durante muito tempo, fui “Getwerg Alberich” (dos Niebelungen Lied).
Mas se Mohr era um excelente cavalo, tinha outra qualidade superior. Era um narrador único, sem rival. Eu ouvi minhas tias dizerem que, quando era criança, era um terrível tirano com suas irmãs às que “guiava” pelo Markusberg em Treveris a grande velocidade, servindo-lhe de cavalos e, o que era pior, insistia em que comeriam os “pasteis” que fazia com uma massa suja e com mãos mais sujas ainda. Mas elas suportavam os “pasteis” sem um murmúrio, para escutar as histórias que Karl lhes contava como prêmio por suas virtudes. E assim, muitos anos depois, Marx lhes contava histórias a suas filhas. A minhas irmãs – eu era muito pequena então – lhes contava contos quando iam de passeio, e aqueles contos se mediam por milhas e não por capítulos.
Conte-nos outra milha”, era a petição das duas meninas. Por minha parte, de muitos contos maravilhosos que Mohr me contou, o mais delicioso era “Hans Röckle”. Durou meses e meses; era toda uma série de contos. Lástima que ninguém pode escrever aqueles contos tão cheios de poesia, engenhosidade e humor! Hans Röckle era um mago ao estilo de Hoffman, que tinha uma tenda de joguetes e que sempre estava “à quarta pergunta”. Sua tenda estava cheia das doias mais maravilhosas – homens e mulheres de madeira, gigantes e anões, reis e rainhas, trabalhadores e senhores, animais e pássaros tão numerosos como os da Arca de Noé, mesas e cadeiras, carruagens, caixas de todas as espécies e tamanhos.
E, embora era um mago, Hans não podia cumprir nunca com suas obrigações nem com o diabo nem com o carniceiro e por isso – muito contra sua vontade – se vi obrigado sempre a vender seus joguetes ao diabo. Estes atravessavam então por maravilhosas aventuras – que terminavam sempre no regresso à tenda de Hans Rockle. Algumas destas aventuras eram tão tristes e terríveis como qualquer das de Hoffman; Algumas eram cômicas; todas narradas com inesgotável inspiração, engenhosidade e humor.
E Mohr também lia para suas filhas. Para mim e para minhas irmãs antes, eu li todo o Homero, todos os Niebelungen Lied, Gudrun, Dom Quixote, As Mil e Uma Noites, e assim por diante. Shakespeare era a Bíblia da nossa casa, sempre na boca de alguém e nas mãos de todos. Quando eu tinha seis anos de idade, eu conhecia todas as cenas de Shakespeare de cor.
Ao completar seis anos, Mohr me deu minha primeira novela: a imortal Peter Simple. A esta segiu toda uma série de Marryat e Cooper. E meu pai lia cada um dos contos ao mesmo tempo que eu e os discutia seriamente com sua filhinha. E quando esta menininha, entusiasmada pelos relatos marinhos de Marryat, declarou que seria “Pós capitão” (o que quer que isto significasse) e consultou a seu papai se não poderia “vestir-se como menino” e “marchar para unir-se a um guerreiro” lhe assegurou que muito bem, poderia fazê-lo, só que não havia nada a ser dito sobre isso para ninguém enquanto os planos não estivessem bem amadurecidos. Mas antes de amadurecer aqueles planos surgiu uma nova mania, a de Scott, e a menininha se inteirou para seu horror que ela mesma pertencia, em parte, ao detestado clã dos Campbel. Então iniciaram os projetos para levantar aos Highlands e reviver aos “quarenta e cinco”. Devo acrescentar que Scott era um autor a quem Marx voltava de novo e de novo, a quem admirava e conhecia tão bem como Balzac e Fielding. E enquanto falava destes e outros muitos livros mostrava a sua filhinha, ainda que ela não se dava plena conta disto, como buscar o melhor de cada obra, ensinado-lhe – ainda que ela nunca pensasse que lhe estavam ensinando, porque se teria oposto a ele – a tratar de pensar, a tratar de entender por si mesma.
E da mesma maneira, este homem “amargo” e “amargado” falava de “política” e de “religião” com sua pequena filha. Recordo perfeitamente que, quando tinha talvez uns cinco ou seis anos, ao sentir certas inquietudes religiosas (havíamos ido a uma igreja católica para ouvir uma belíssima música) eu as confiei a Mohr e então ele me explicou tudo com grande clareza e diretamente, de tal modo que desde então até agora jamais uma dúvida voltou a cruzar minha mente. E como recordo seu relato da história – não creio que jamais havia sido narrada dessa maneira, antes ou depois – do carpinteiro a quem mataram os ricos, dizendo-me uma e outra vez: “Afinal, podemos perdoar muito o cristianismo, porque nos ensinou o culto da criança.”
E o próprio Marx poderia ter dito “Deixai as crianças virem até mim” porque, aonde quer que ele fosse, as crianças apareciam de alguma maneira. Se se sentava no Heath em Hampstead – um grande espaço aberto no Norte de Londres, em torno de nossa antiga casa - , se se sentava em um banco, em algum parque, pronto se via rodeado de um grupo de crianças, que se envolvia nas relações mais amigáveis e íntimas com esse homem corpulento, de longos cabelos e barba, com gentis olhos castanhos. Crianças totalmente desconhecidas se lhe acercavam, o prendiam na rua… Recordo que uma vez um pequeno estudante de uns dez anos, deteve sem nenhuma cerimônia ao temido “chefe da Internacional” em Maitland Park, pedindo-lhe para "fazer lâminas de barbear". Depois de uma explicação curta e necessária de que "cambalache" era, na linguagem da escola, "mudança", os dois sacaram as facas e as compararam. A do menino só tinha uma lâmina; a do homem tinha duas, mas não havia dúvidas de que estavam gastas. Depois de longa discussão se chegou a um acordo e trocaram-se as lâminas, acrescentando um centavo ao terrível "comandante da Internacional", em consideração à despesa de suas lâminas.
Como recordo também, a infinita paciência e doçura com que, uma vez que a guerra norteamericana e os Blues Books deslocaram por um momento a Marryar e a Scott, respondia a todas as perguntas e nunca se queixava de uma interrupção. E, no entanto, não deve ter sido um pequeno aborrecimento ter uma menininha ao lado falando enquanto ele estava trabalhando em seu grande livro. Mas nunca permitiu que a menininha sentisse que estava aborrecendo. Recordo que, naquele momento, me sentia absolutamente convencida de que Abraham Lincoln necessitava urgentemente de meus conselhos a respeito da guerra e lhe dirigia longas cartas que Mohr, é claro, tinha que ler e colocar no correio. Muitos anos depois me mostrou aquelas cartas infantis, que havia conservado porque lhe haviam divertido.
E assim, nos anos de minha infância e minha adolescência, Mohr foi o amigo ideal. Na casa todos éramos bons camaradas e ele era sempre o mais gentil e de melhor humor. Ainda durante os anos de sofrimento, quando estava constantemente doente, quando sofria de carbúnculos, ainda até o final...
Eu escrevi estas lembranças dispersas, mas estariam incompletas se não acrescentasse umas palavras acerca de minha mãe. Não é um exagero dizer que Karl Marx não haveria sido jamais o que foi sem Jenny von Westphalen. Jamais as vidas de dois seres – ambos notáveis – se identificaram tanto, foram tão complementares um do outro. De extraordinária beleza – uma beleza que trouxe alegria e orgulho até o fim e que despertou admiração em homens como Heine e Herwegh e Lasalle - , de uma mente e uma engenhosidade tão brilhantes como sua beleza, Jenny von Wetsphalen era uma mulher como só se encontra uma em um milhão. Quando crianças, Jenny e Karl jogaram juntos; de jovens – ele com dezessete anos, ela com vinte e um – se comprometeram em matrimônio e, como Jacob por Rachel, ele fez méritos por ela sete anos antes de se casar. Depois, através dos anos de tormentas e dificuldades, de exílio, tremenda pobreza, calúnias, dura luta e esforçada batalha, os dois, com sua fiel amiga Héléne Demuth, se enfrentaram ao mundo sem titubear, sem retroceder, sempre no lugar do dever e do perigo. Na verdade posso dizer dela, com palavras de Browning:
É, imortalmente, minha noiva.
Nenhuma sorte pode variar meu amor
ou deteriorar-se ao longo do tempo.
E penso algumas vezes que um laço quase tão forte entre eles como sua devoção à causa dos trabalhadores era seu imenso senso de humor. Não há dúvida de uqe ninguém tem gozado mais de um bom chiste que eles dois. Uma e outra vez – especialmente se a ocasião exigia decoro e compostura - , eu os vi rir até as lágrimas escorrerem pelas suas bochechas e, mesmo aquelas inclinadas a serem incomodadas por tamanha leveza, não podiam fazer mais que rir com eles. E quantas vezes eu os vi sem ousar olhar um para o outro, sabendo os dois que se trocassem um olhar, não poderiam conter o riso. Ver aos dois com os olhos fixos em qualquer outra coisa, para todo o mundo como duas crianças de escola, sufocados de um siso contido que por fim, apesar de todos os esforços, havia de estalar, é uma recordação que não trocaria por todos os milhões que eles dizem que eu herdei. Se, apesar de todos os sofrimentos, a luta, as decepções, era um casal alegre e o amargado Júpiter Tonante não passa de ser uma ficção da imaginação burguesa. E, se nos anos de luta houve muitas desilusões, se tropeçaram com uma estranha intratidão, tiveram o que poucos possuem: verdadeiros amigos. Donde se conhece o nome de Marx, se conhece também o nome de Friedrick Engels. E os que conheceram a Marx em sua casa também se lembram do nome da mulher mais nobre que já viveu, o honrado nome de Héléle Demuth.
Para os que estudam a natureza humana não parecerá estranho que este homem, que era tão grande lutador, fora ao mesmo tempo o mais bondoso e gentil dos homens. Entenderão que só podia odiar tão ferozmente porque era capaz de amar com esta profundidade; que se sua caneta afiada podia prender uma alma no inferno como o próprio Dante era porque se tratava de um homem leal e terno; que seu humor sarcástico podia atacar como um ácido corrosivo, este mesmo humor podia ser um bálsamo para os preocupados e aflitos. Minha mãe morreu em dezembro de 1881. Quinze meses depois, ele, que nunca se havia separado dela em vida, foi reunir-se com ela na morte. Depois da caprichosa febre da vida, os dois repousaram. Se ela foi uma mulher ideal, ele, bom, ele “era um homem, em toda e qualquer situação, como eu não esperava encontrar um outro tal.”

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