Poucas horas após ser libertado do Complexo Penitenciário de Bangu, no último dia 25 de junho, o ativista Igor Mendes concedeu uma entrevista para o jornal A Nova Democracia, ao vivo através do site TwitCasting, sobre os 6 meses e 22 dias de sua prisão política. Na ocasião, a nossa equipe se dirigiu até a casa de um apoiador no bairro do Flamengo, na Zona Sul do Rio de Janeiro, onde também conversou com a ativista Elisa Quadros, a Sininho, que passou o mesmo período vivendo na clandestinidade. Igor e Elisa falaram com exclusividade ao AND. Na noite daquele mesmo dia, ambos foram recepcionados no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, no Centro da cidade, numa emocionante atividade que contou com a participação de mais de 200 pessoas.
Elisa Quadros e Igor Mendes em entrevista ao vivo para o AND
AND: O que essa vida de clandestinidade e de prisão ensinou politicamente para vocês?
Igor: Ela ensina, sobretudo, que eles podem tirar nossa liberdade temporariamente, podem tirar o convívio com as pessoas que nós amamos temporariamente, podem prender nosso corpo e podem até tirar nossa vida, mas a nossa dignidade não. A dignidade é a junção do sentimento com o dever, com a nossa causa. Isso eles não podem tirar. Eu me lembro da frase de um livro que me ajudou muito na prisão, eu já tinha lido antes, do Alípio de Freitas, do leão Alípio de Freitas, que é o Resistir é Preciso, e ele fala isso lá. A gente aprendeu isso e também aprendeu que não tem limites. A gente está acostumado a pensar assim, ‘até de certo ponto para lá, acho que eu não aguento’, e não tem isso! Na verdade, nossos limites são relativos, depende da convicção, dos laços de companheirismo que a gente constrói.
Elisa: Eu nunca vou esquecer uma cena que eu vi na segunda vez que eu estava presa, que era um corredor de tortura aquilo ali, muito frio. As presas mesmo não podiam falar com a gente. E todo dia tinha tortura pra castigar, de certa forma, a gente também. Porque diziam ‘ó, vocês estão tendo um tratamento especial’, mas não existe tratamento especial na prisão, a prisão não deveria nem existir da forma que ela é, um castigo. Então, teve uma das noites em que ela [uma detenta] estava chorando, num corredor frio que tem duas grades, muito gelado, e estava a noite inteira sem comer, sem beber, sem nada, e dizia ‘estou com frio, eu sou um ser humano’, e nós desesperadas sem saber o que fazer. Ela começou a gritar e veio a carcereira pra querer bater nela. Ela falou: ‘você pode bater em mim, mas eu sou um ser humano igual a você e a gente não tem diferença só porque você está com esse uniforme. Aqui você vai conseguir bater em mim, mas a gente é igual’. Para mim isso foi tão tocante. Depois que ela falou isso deu coragem para as militantes que estavam presas. Não sei que educação ela teve, quem ela é, mas uma mulher que estava ali, ‘presa comum’, ela teve a capacidade de chocar a carcereira, dar coragem pra gente e acho que pra todo mundo que estava ali. Dignidade é isso, não adianta dar castigo, o máximo que eles vão fazer é tirar um corpo.
Igor: Os presos, os carcereiros me perguntavam: ‘e aí, depois dessa dura aí você vai voltar? Vale a pena?’ E eu respondi isso o tempo todo. As convicções que eu tinha quando entrei na prisão, não só as mantenho, como hoje elas são muito mais fortes. Eu fui apresentado a um mundo que, na verdade, é um ‘submundo’ — a prisão num país com um salário mínimo de fome, num país de desempregados e desvalidos, a prisão é uma política habitacional do Estado, cada vez mais para os pobres —, é o mundo que nós temos. Então eu só reforcei em mim as convicções que eu tenho. Eu sinto que roubaram um tempo da minha vida que não volta, então a sensação que eu tenho é que eu não tenho tempo a perder [...] A cadeia é a pequena prisão, a sociedade é, cada vez mais, uma prisão.
AND: Igor, como era sua rotina lá dentro? Nós do jornal estamos fazendo um filme denunciando as condições do sistema penitenciário e as pessoas nos relatam muito sobre o assunto. Como foi conviver com toda a violência dentro daquela masmorra?
Igor: Vou tentar resumir porque isso dá muitas e muitas linhas. Eu passei a primeira fase em péssimas condições, passei 40 dias num isolamento duríssimo no presídio Bangu 10, a entrada do sistema penitenciário. É um centro de tortura, digo isso na frente de qualquer um. Ali eu vi presos sendo espancados todos os dias sem exceção. Eu passava 24h por dia trancado na cela, isolado, só saia para conversar com meus advogados, sem nada. Eu nunca aceitei isso. O primeiro dia foi o mais difícil dos 204 dias que eu completaria. Em Bangu 10 eu não tinha nada, a não ser a cela. Então, eu acordava num ‘confere’ às 7 horas da manhã, vinha um café ralo e um pão e eles conversavam com os presos. Daí conversavam e conversavam, depois cada um ia pra sua cela, esperava o dia passar. Vinha o almoço, o pessoal comia o que aguentava, depois conversava mais um pouco. Não tinha nada, nem banho de sol, rigorosamente nada. Essa era a rotina no Bangu 10.
A prisão é feita pra quebrar a vontade das pessoas. É um sistema pra quebrar vontades. Almas e vontades. Eles fazem num primeiro momento um choque, na pressão, e depois vão tentando te quebrar aos poucos. Quando a prisão vai se prolongando, eles vão te quebrando pelo cotidiano. São 18h, essa hora o sol já tinha acabado, já tinham dado o ‘confere’ da noite e você conversa com um preso ou outro, via televisão, e acabou, depois era esperar o dia de amanhã, que ia ser igual o dia de hoje. E eu tentava quebrar isso, seja conversando sempre com os outros presos, buscando manter a mente ocupada, sempre lendo e escrevendo. Eu repito: eles podem nos prender, mas aqui [a mente] eles não podem prender. Aí depende de nós!
AND: Você pode dar uma mensagem sobre o momento que estamos vivendo hoje de lutas e sobre essa questão da institucionalidade? A liberdade que estamos comemorando aqui é uma vitória dentro da institucionalidade. O que significa isto para vocês?
Igor: Sobre a institucionalidade, eu vou lembrar de um depoimento meu. O promotor perguntou se eu era a favor do Estado de direito ou de uma revolução. Eu até respondi meio mal porque as condições que nós tínhamos que falar eram as piores possíveis. Primeiro que o Estado de direito é uma fraude, uma farsa para a maioria da população. Eu vi o que é o Estado ‘de direito’ na prisão. Lá, da cancela do presídio de Bangu para dentro, aquilo que chamam de ‘direitos’, ‘direitos humanos’, aquilo que foi consagrado pela revolução francesa há mais de 200 anos atrás, não existem, entendeu? Lá você está submetido ao humor do funcionário do plantão, ao temperamento do administrador, e não é diferente do que a gente vê na favela, não é diferente se a gente descer aqui e ver os moradores de rua. Eu pergunto: que Estado de direito é esse? E mesmo que a gente tenha direitos, eles foram conquistados através de uma série de lutas [...] E uma mensagem bem curtinha. Eu me lembrei muito daquela música do Milton Nascimento, que ele fala ‘nada a temer senão o correr da luta’.
A gente está aqui com a Luiza [Maranhão] e com o Marino [D’Icarahy]. No tribunal, ele[o Dr. Marino] derrubou a nossa proibição de ir em manifestação. No Brasil inteiro, os vários tribunais usavam esse artifício ilegal, inconstitucional, ditatorial de proibir alguém de ir numa manifestação pública. Se a gente contar, a Elisa estava há 7 meses na clandestinidade quase e eu estava há 7 meses preso num presídio de segurança máxima porque a gente foi num debate em praça pública. Se falarmos isso em qualquer lugar do mundo, acho que as pessoas não vão acreditar. Mas o Brasil é um país ‘democrático’. E nós saímos com essa medida cautelar derrubada. Ou seja, se alguém tinha dúvida que nós não tínhamos que ficar nenhum minuto preso, acho que não resta mais dúvida nenhuma.
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