Reproduzimos texto do companheiro Igor Mendes publicado na última edição (n° 171) do Jornal A Nova Demcracia
Bloco da Frente Independente Popular (FIP) em manifestação no Rio de Janeiro, 7/10/2013
Manifestantes ocupam o teto do Congresso Nacional em Brasília, 17/6/2013
Histórica imagem de manifestantes enfrentando o ‘caveirão’ da polícia. Rio, 20/6/2013
Notas
1 - Link em: http://esporte.uol.com.br/ultimas/2009/10/02/ult58u1761.jhtm
2 - Ver “Jornal da Globo”, edição de 12/06/2013.
3 - Link em: www1.folha.uol.com.br/opiniao/2013/06/1294185-editorial-retomar-a-paulista.shtml
4 - Ver “Brasil Urgente”, edição de 13/06/2013. Desconcertado com o fracasso da sua manipulação, o apresentador comentou: “Entre bandido e polícia, prefiro a polícia. Entre o povo e polícia, prefiro o povo”.
5 - O discurso mais emblemático nesse sentido foi dado pela filósofa e ideóloga petista Marilena Chauí, que em palestra para oficiais da PM do Rio de Janeiro disse que os black bloc’s agiam com “inspiração fascista”.
"Nos grandes processos históricos vinte anos equivalem a um dia, ainda que em seguida possam apresentar-se dias que concentram em si vinte anos." - K. Marx
As Jornadas de Junho de 2013 foram consequência de uma muito particular convergência de contradições.
Reduzi-las à luta contra o aumento das passagens, ou pelo “direito à
cidade”, seria empobrecer seu significado, deturpar o seu alcance.
Aqueles acontecimentos, que a muitos surpreenderam, como se se tivessem
produzido num passe de mágica, foram o resultado necessário de anos de
revoltas localizadas, achaques, autos de resistência, remoções
forçadas, inépcia dos “governantes”, corrupção, falência dos serviços
públicos, em suma, centenas de milhares e milhões de pequenos
descontentamentos e arbitrariedades que conformam a nossa “ordem”
cotidiana. A brutal repressão policial, desencadeada contra a juventude
mobilizada nas ruas, e a realização da Copa das Confederações,
serviram como catalisadores, o fio condutor que conectou todas aquelas
lutas, que se desenrolavam até então aparentemente isoladas umas das
outras.
Bloco da Frente Independente Popular (FIP) em manifestação no Rio de Janeiro, 7/10/2013
O Brasil da contrapropaganda oficial vs o Brasil real
Vivemos, nos anos anteriores a 2013, uma
reedição daquele ufanismo de grande potência visto sob o regime
militar. A farta liberação de crédito, o preço elevado das commodities no
mercado internacional e a avassaladora ofensiva ideológica dos
governos petistas – turbinando como nunca antes na história deste País o
caixa dos monopólios de imprensa, principalmente a Rede Globo –
bombardeavam a população com a promessa de um novo tempo inaugurado
para sempre. Os índices de popularidade de Dilma Rousseff e de vários
governadores estavam nas alturas, pesquisas “comprovavam” a emergência
de uma numerosa “classe média” e mesmo a elevação da “autoestima” do
brasileiro. A Copa do Mundo e as Olimpíadas viriam coroar, perante o
mundo, esse inigualável “avanço civilizatório”. Crise mundial? Que nada,
no Brasil estávamos “imunes” a isso...
Observar os discursos oficiais de época
tão distante, dado tudo que aconteceu de lá pra cá, embora próxima no
tempo, não deixa de ser bastante ilustrativo. Henrique Meirelles, então
presidente do Banco Central do governo Lula, discursou assim perante o
Comitê Olímpico Internacional (COI), defendendo a candidatura Rio
2016:
“Nós temos a 10ª maior economia do
mundo e o Banco Mundial prevê que seremos a quinta até 2016. Já somos o
quinto maior mercado publicitário do mundo e ainda estamos crescendo. E
graças ao descobrimento do maior campo petroleiro do mundo, temos
também grande reserva de petróleo. Nossa força econômica traz a certeza
que podemos ter os Jogos Olímpicos”1
Trata-se de discurso realmente
emblemático, porque transcende a questão dos Jogos. É o “país do
futuro”, o Brasil “potência emergente”, esse apresentado por Meirelles.
Era contra essa quimera, tornada “verdade” incontestável por força de
repetição, que se batiam os revolucionários, embaixo de mil
dificuldades, durante a belle époque dos governos de “esquerda” da
América Latina, que tinham no PT o seu maior expoente. Essas crenças
ufanas, entretanto, como sabemos, tiveram triste fim, mais ou menos
como ocorreu com o velho Policarpo Quaresma de Lima Barreto,
estatelando-se frente à teimosa realidade. Descobriu-se, afinal, que o
gigante tinha pés de barro...
A brutal repressão nacionalizou os protestos
As Jornadas de Junho vieram quebrar aquela narrativa triunfalista, demoli-la
pela ação enérgica de centenas de milhares e milhões de pessoas,
principalmente da juventude, mais livre das relações de corporativização
e peleguismo que vêm reinando no interior do chamado “movimento social
organizado”, praticamente todo ele tornado mera correia de transmissão
do governo federal à época. Em algumas semanas, em dias até, a ação
das massas nas ruas limpou no atacado montões de lixo de reformismo e
legalismo acumulados há décadas no movimento popular. Não por acaso, a
reação dos governantes foi, num primeiro momento, de verdadeira
estupefação diante da revolta que, numa onda, tomou de assalto as ruas
do Brasil. Tentou-se, primeiro, desqualificar a juventude combatente.
Quem não se lembra das palavras do pedante Arnaldo Jabor, obrigado
depois a um mea-culpa, de que aqueles “revoltosos de classe média não valem nem 20 centavos”2? Ou do virulento editorial da Folha de São Paulo, de 13/06/2013, com o sugestivo título “Retomar a Paulista”:
Manifestantes ocupam o teto do Congresso Nacional em Brasília, 17/6/2013
“O direito de manifestação é sagrado,
mas não está acima da liberdade de ir e vir – menos ainda quando o
primeiro é reclamado por poucos milhares de manifestantes e a segunda é
negada a milhões... É hora de pôr um ponto final nisso.
Prefeitura e Polícia Militar precisam fazer valer as restrições já
existentes para protestos na avenida Paulista, em cujas imediações estão
sete grandes hospitais”3 (Grifo meu).
Essa foi a senha para a inaudita
repressão perpetrada pela PM paulista naquele dia, gerando intensa
comoção nacional. No dia 17 de junho a resposta à selvageria policial
veio nas ruas: protestos em centenas de cidades brasileiras,
demonstrando que as manifestações se tinham definitivamente
nacionalizado. Em Brasília o teto do Congresso Nacional foi invadido
pela multidão, e no Rio de Janeiro desenrolou-se a histórica “Batalha
da ALERJ”, com as tropas perdendo no confronto com as massas. A tática
belicista da reação, como se vê, apenas jogou lenha na fogueira da
rebelião popular. A opinião pública estava em massa, naquele momento,
ao lado da juventude combatente, como comprovou a enquete manipulada no
programa do fascistóide Datena, na qual a imensa maioria de seus
telespectadores declarou-se favorável aos protestos “com baderna”4.
Frustrado aquele caminho, os
governantes, em simbiose com os monopólios de imprensa, passaram a
exaltar de boca os protestos, como se não tivessem nada a ver com eles,
buscando dividir os manifestantes entre “ordeiros” e “vândalos” (essa
foi a tônica do discurso de Dilma em rede nacional, em 21 de junho). No
dia 19 de junho, o aumento das passagens foi revogado em dezenas de
cidades brasileiras, inclusive no Rio de Janeiro e em São Paulo,
tornando realidade o que antes era apresentado como “ilegal”,
“impensável” etc., etc. No dia 20, comprovando mais uma vez não ser
“apenas por vinte centavos”, as manifestações chegaram ao seu ponto
culminante, e no Rio de Janeiro marcharam um milhão de pessoas na
Avenida Presidente Vargas. Aí, a PM voltou a reprimir duramente a
multidão, inclusive lançando o odiado Caveirão contra a juventude
combatente, desmentindo toda a demagogia anterior e preparando o
terreno para o prosseguimento das mobilizações pós-junho.
Um divisor de águas
Rigorosamente falando, não existem
“marcos-zero” exatos na história, e há vários antecedentes importantes,
ou “sintomas” de Junho, como as rebeliões operárias nas obras do PAC,
as greves nos canteiros de obra dos estádios da Copa da FIFA, a
ascensão das greves, principalmente do funcionalismo público nos anos
de 2011 e 2012. Em 2013, antes de junho, já haviam ocorrido protestos
massivos e muito radicalizados contra o aumento das passagens, como em
Goiânia, em que os estudantes conseguiram revogar a alta da tarifa.
Mas, como é sempre preciso, para efeito didático, datar e nomear as
coisas, as Jornadas de Junho representaram, inquestionavelmente, um
divisor de águas na vida política do País. A quantidade de massas
mobilizadas então revelava um salto de qualidade na situação
revolucionária que já vinha se desenvolvendo. E, como todo divisor de
águas, representaram uma ruptura. Mas ruptura com o que, exatamente?
Histórica imagem de manifestantes enfrentando o ‘caveirão’ da polícia. Rio, 20/6/2013
Ruptura principalmente com uma cultura
política oportunista que apregoava a infinita “acumulação de forças”
pacífica e a ação eleitoral não apenas como as mais corretas (o que já
seria absurdo), mas mesmo como as únicas táticas legítimas a ser usadas
pelos oprimidos, condenando tudo e todos que as rechaçavam. Mostravam,
basilarmente, aquelas Jornadas, o esgotamento do gerenciamento petista
e do seu reformismo sem reformas, que sacrificou o que chamava
de “bandeiras históricas” – como a “reforma agrária” – no altar da
governabilidade, passando desde 2003 a gerenciar os negócios da grande
burguesia e do latifúndio, lacaios do imperialismo, e o seu velho
Estado genocida. Não deixa de ser significativo recordar que muitos dos
ilustres intelectuais de “esquerda” que ora clamam sobre um “golpe”,
naquela oportunidade defenderam a atuação da polícia e atacaram os
manifestantes, justamente porque estes, no seu entendimento, atentavam
contra a “democracia”, que então lhes parecia “sólida”5...
Seria completamente errado, entretanto,
dizer que as Jornadas de Junho voltaram-se somente contra os governos
do PT, como ocorreu nos protestos desatados a partir de março de 2015.
Não. Junho foi um movimento espontâneo, multitudinário, que não tinha
(nem poderia ter) um programa definido, uma vez que expressava a
insatisfação profunda de amplas parcelas de nossa sociedade não com um
governo em particular, mas com a própria ordem social no seu conjunto. Embora sem uma bandeira unificada, Junho foi um movimento essencialmente político,
expressão de um vasto e profundo descontentamento existente no seio do
povo. Essa é a dialética da vida que tantos não querem (ou não podem)
entender. O aumento das passagens, se absurdo, ocorria ano após ano,
ritualmente, sem nunca ter provocado manifestações com a magnitude das
que vimos em 2013, e voltou a ocorrer depois também sem os mesmos
efeitos. A crise econômica, com disparada do desemprego e inflação, não
atingira àquela altura os alarmantes níveis atuais. Arriscar uma
explicação economicista para aquele movimento, portanto, não nos levaria
muito longe.
Deve-se também ressaltar que a
realização da Copa das Confederações/futura Copa do Mundo, com seus
gastos bilionários, bloqueios de vias e leis de exceção, além da
visibilidade que dava às manifestações no exterior, foi outro fator
central para a eclosão das Jornadas naquele momento. Não por
acaso o grito “Não vai ter Copa!” apareceu nas manifestações como uma
síntese de toda aquela indignação com as péssimas condições de vida, e
principalmente os serviços públicos precários, oferecidos ao nosso
povo. Lembro-me de um cartaz que vi à época, e que me pareceu
verdadeiramente genial: Não vai ter Copa, o povo resolveu jogar.
A ação educa, como falava o grande
Lenin, e no curso da luta mesma as massas foram se politizando,
aprendendo por experiência própria a diferenciar amigos de inimigos,
aprendendo a precisar os alvos da sua fúria, como não tardou a
acontecer com a “todo-poderosa” Rede Globo, expulsa do meio das
manifestações sob o grito de: A verdade é dura, a Rede Globo apoiou a ditadura – e ainda apoia!
Significado e limites das Jornadas de Junho
Depois de Junho de 2013, realmente, o
Brasil não tem sido o mesmo. As manifestações entraram na ordem do dia,
tornaram-se um fenômeno do cotidiano, e não apenas nos maiores centros
urbanos. Cresceu a politização da sociedade em geral, e todas as
forças que buscam intervir na realidade veem-se obrigadas a apelar para
a mobilização popular. Disso não se depreende, todavia, que a grande
energia das massas liberada desde então será necessariamente canalizada
para a esquerda. Ora, seria agir como idealistas esperar que as coisas
já nascessem prontas. Entre a queda do velho e a ascensão do novo
permeia um tempo de lutas, indefinições, avanços e recuos. Como dizia o
Presidente Mao, não há que temer as grandes tormentas, pois é através
delas que as sociedades humanas têm avançado ao longo dos tempos.
Sem resolver o problema da vanguarda
revolucionária, capaz de dirigir num rumo correto os levantamentos
populares, seu desfecho não pode deixar de ser ou a mera troca de um
governo por outro, ou um banho de sangue, como registra tantas vezes a
história; sem solucionar essa questão crucial, nenhum levantamento, por
mais heroico e massivo que seja, pode triunfar. Outro problema
candente é o da aliança operário-camponesa, afinal, um levantamento
insurrecional na cidade, desprovido de retaguarda e apoio ativo por
parte das massas do campo – as mais oprimidas de nossa sociedade – será
facilmente isolado e esmagado pela reação, como prova a história de
todas as revoluções do século XX.
Muitos acreditavam, sobretudo entre as
correntes filiadas ao anarquismo, que as ondas de lutas poderiam
prolongar-se indefinidamente, mais ou menos impunemente, esquecendo-se
que há uma minoria privilegiada que se beneficia diretamente da ordem
econômico-social iníqua que temos, e que está disposta a defendê-la a
ferro e fogo. Afinal, o aparelho de Estado que as oligarquias que nos
dominam secularmente construíram à sua imagem e semelhança, que tem nas
forças armadas a sua medula, está aí para resguardar os intocáveis
interesses daquelas classes, como comprova a trajetória do nosso País
carente de revoluções triunfantes.
As manifestações de rua, assim como as
greves, são um fator bastante importante no processo geral de elevação
da consciência de classe dos oprimidos, e os revolucionários devem aí
atuar com toda energia, sob pena de converterem-se nuns doutrinários
inofensivos. Tampouco podem superestimar essas formas de luta, uma vez
que, por si só, são incapazes de alterar as bases reais do sistema de
dominação contra o qual se chocam. A revolução futura será algo
bastante mais complexo, sem dúvida nenhuma.
__________________Notas
1 - Link em: http://esporte.uol.com.br/ultimas/2009/10/02/ult58u1761.jhtm
2 - Ver “Jornal da Globo”, edição de 12/06/2013.
3 - Link em: www1.folha.uol.com.br/opiniao/2013/06/1294185-editorial-retomar-a-paulista.shtml
4 - Ver “Brasil Urgente”, edição de 13/06/2013. Desconcertado com o fracasso da sua manipulação, o apresentador comentou: “Entre bandido e polícia, prefiro a polícia. Entre o povo e polícia, prefiro o povo”.
5 - O discurso mais emblemático nesse sentido foi dado pela filósofa e ideóloga petista Marilena Chauí, que em palestra para oficiais da PM do Rio de Janeiro disse que os black bloc’s agiam com “inspiração fascista”.
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