Sunday, June 26, 2016

Brasil - Algumas lições das Jornadas de Junho de 2013

  


Reproduzimos texto do companheiro Igor Mendes publicado na última edição (n° 171) do Jornal A Nova Demcracia




"Nos grandes processos históricos vinte anos equivalem a um dia, ainda que em seguida possam apresentar-se dias que concentram em si vinte anos." - K. Marx
As Jornadas de Junho de 2013 foram consequência de uma muito particular convergência de contradições. Reduzi-las à luta contra o aumento das passagens, ou pelo “direito à cidade”, seria empobrecer seu significado, deturpar o seu alcance. Aqueles acontecimentos, que a muitos surpreenderam, como se se tivessem produzido num passe de mágica, foram o resultado necessário de anos de revoltas localizadas, achaques, autos de resistência, remoções forçadas, inépcia dos “governantes”, corrupção, falência dos serviços públicos, em suma, centenas de milhares e milhões de pequenos descontentamentos e arbitrariedades que conformam a nossa “ordem” cotidiana. A brutal repressão policial, desencadeada contra a juventude mobilizada nas ruas, e a realização da Copa das Confederações, serviram como catalisadores, o fio condutor que conectou todas aquelas lutas, que se desenrolavam até então aparentemente isoladas umas das outras.
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Bloco da Frente Independente Popular (FIP) em manifestação no Rio de Janeiro, 7/10/2013
O Brasil da contrapropaganda oficial vs o Brasil real
Vivemos, nos anos anteriores a 2013, uma reedição daquele ufanismo de grande potência visto sob o regime militar. A farta liberação de crédito, o preço elevado das commodities no mercado internacional e a avassaladora ofensiva ideológica dos governos petistas – turbinando como nunca antes na história deste País o caixa dos monopólios de imprensa, principalmente a Rede Globo – bombardeavam a população com a promessa de um novo tempo inaugurado para sempre. Os índices de popularidade de Dilma Rousseff e de vários governadores estavam nas alturas, pesquisas “comprovavam” a emergência de uma numerosa “classe média” e mesmo a elevação da “autoestima” do brasileiro. A Copa do Mundo e as Olimpíadas viriam coroar, perante o mundo, esse inigualável “avanço civilizatório”. Crise mundial? Que nada, no Brasil estávamos “imunes” a isso...
Observar os discursos oficiais de época tão distante, dado tudo que aconteceu de lá pra cá, embora próxima no tempo, não deixa de ser bastante ilustrativo. Henrique Meirelles, então presidente do Banco Central do governo Lula, discursou assim perante o Comitê Olímpico Internacional (COI), defendendo a candidatura Rio 2016:
“Nós temos a 10ª maior economia do mundo e o Banco Mundial prevê que seremos a quinta até 2016. Já somos o quinto maior mercado publicitário do mundo e ainda estamos crescendo. E graças ao descobrimento do maior campo petroleiro do mundo, temos também grande reserva de petróleo. Nossa força econômica traz a certeza que podemos ter os Jogos Olímpicos”1
Trata-se de discurso realmente emblemático, porque transcende a questão dos Jogos. É o “país do futuro”, o Brasil “potência emergente”, esse apresentado por Meirelles. Era contra essa quimera, tornada “verdade” incontestável por força de repetição, que se batiam os revolucionários, embaixo de mil dificuldades, durante a belle époque dos governos de “esquerda” da América Latina, que tinham no PT o seu maior expoente. Essas crenças ufanas, entretanto, como sabemos, tiveram triste fim, mais ou menos como ocorreu com o velho Policarpo Quaresma de Lima Barreto, estatelando-se frente à teimosa realidade. Descobriu-se, afinal, que o gigante tinha pés de barro...
A brutal repressão nacionalizou os protestos
As Jornadas de Junho vieram quebrar aquela narrativa triunfalista, demoli-la pela ação enérgica de centenas de milhares e milhões de pessoas, principalmente da juventude, mais livre das relações de corporativização e peleguismo que vêm reinando no interior do chamado “movimento social organizado”, praticamente todo ele tornado mera correia de transmissão do governo federal à época. Em algumas semanas, em dias até, a ação das massas nas ruas limpou no atacado montões de lixo de reformismo e legalismo acumulados há décadas no movimento popular. Não por acaso, a reação dos governantes foi, num primeiro momento, de verdadeira estupefação diante da revolta que, numa onda, tomou de assalto as ruas do Brasil. Tentou-se, primeiro, desqualificar a juventude combatente. Quem não se lembra das palavras do pedante Arnaldo Jabor, obrigado depois a um mea-culpa, de que aqueles “revoltosos de classe média não valem nem 20 centavos”2? Ou do virulento editorial da Folha de São Paulo, de 13/06/2013, com o sugestivo título “Retomar a Paulista”:
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Manifestantes ocupam o teto do Congresso Nacional em Brasília, 17/6/2013
“O direito de manifestação é sagrado, mas não está acima da liberdade de ir e vir – menos ainda quando o primeiro é reclamado por poucos milhares de manifestantes e a segunda é negada a milhões... É hora de pôr um ponto final nisso. Prefeitura e Polícia Militar precisam fazer valer as restrições já existentes para protestos na avenida Paulista, em cujas imediações estão sete grandes hospitais”3 (Grifo meu).
Essa foi a senha para a inaudita repressão perpetrada pela PM paulista naquele dia, gerando intensa comoção nacional. No dia 17 de junho a resposta à selvageria policial veio nas ruas: protestos em centenas de cidades brasileiras, demonstrando que as manifestações se tinham definitivamente nacionalizado. Em Brasília o teto do Congresso Nacional foi invadido pela multidão, e no Rio de Janeiro desenrolou-se a histórica “Batalha da ALERJ”, com as tropas perdendo no confronto com as massas. A tática belicista da reação, como se vê, apenas jogou lenha na fogueira da rebelião popular. A opinião pública estava em massa, naquele momento, ao lado da juventude combatente, como comprovou a enquete manipulada no programa do fascistóide Datena, na qual a imensa maioria de seus telespectadores declarou-se favorável aos protestos “com baderna”4.
Frustrado aquele caminho, os governantes, em simbiose com os monopólios de imprensa, passaram a exaltar de boca os protestos, como se não tivessem nada a ver com eles, buscando dividir os manifestantes entre “ordeiros” e “vândalos” (essa foi a tônica do discurso de Dilma em rede nacional, em 21 de junho). No dia 19 de junho, o aumento das passagens foi revogado em dezenas de cidades brasileiras, inclusive no Rio de Janeiro e em São Paulo, tornando realidade o que antes era apresentado como “ilegal”, “impensável” etc., etc. No dia 20, comprovando mais uma vez não ser “apenas por vinte centavos”, as manifestações chegaram ao seu ponto culminante, e no Rio de Janeiro marcharam um milhão de pessoas na Avenida Presidente Vargas. Aí, a PM voltou a reprimir duramente a multidão, inclusive lançando o odiado Caveirão contra a juventude combatente, desmentindo toda a demagogia anterior e preparando o terreno para o prosseguimento das mobilizações pós-junho.
Um divisor de águas
Rigorosamente falando, não existem “marcos-zero” exatos na história, e há vários antecedentes importantes, ou “sintomas” de Junho, como as rebeliões operárias nas obras do PAC, as greves nos canteiros de obra dos estádios da Copa da FIFA, a ascensão das greves, principalmente do funcionalismo público nos anos de 2011 e 2012. Em 2013, antes de junho, já haviam ocorrido protestos massivos e muito radicalizados contra o aumento das passagens, como em Goiânia, em que os estudantes conseguiram revogar a alta da tarifa. Mas, como é sempre preciso, para efeito didático, datar e nomear as coisas, as Jornadas de Junho representaram, inquestionavelmente, um divisor de águas na vida política do País. A quantidade de massas mobilizadas então revelava um salto de qualidade na situação revolucionária que já vinha se desenvolvendo. E, como todo divisor de águas, representaram uma ruptura. Mas ruptura com o que, exatamente?
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Histórica imagem de manifestantes enfrentando o ‘caveirão’ da polícia. Rio, 20/6/2013
Ruptura principalmente com uma cultura política oportunista que apregoava a infinita “acumulação de forças” pacífica e a ação eleitoral não apenas como as mais corretas (o que já seria absurdo), mas mesmo como as únicas táticas legítimas a ser usadas pelos oprimidos, condenando tudo e todos que as rechaçavam. Mostravam, basilarmente, aquelas Jornadas, o esgotamento do gerenciamento petista e do seu reformismo sem reformas, que sacrificou o que chamava de “bandeiras históricas” – como a “reforma agrária” – no altar da governabilidade, passando desde 2003 a gerenciar os negócios da grande burguesia e do latifúndio, lacaios do imperialismo, e o seu velho Estado genocida. Não deixa de ser significativo recordar que muitos dos ilustres intelectuais de “esquerda” que ora clamam sobre um “golpe”, naquela oportunidade defenderam a atuação da polícia e atacaram os manifestantes, justamente porque estes, no seu entendimento, atentavam contra a “democracia”, que então lhes parecia “sólida”5...
Seria completamente errado, entretanto, dizer que as Jornadas de Junho voltaram-se somente contra os governos do PT, como ocorreu nos protestos desatados a partir de março de 2015. Não. Junho foi um movimento espontâneo, multitudinário, que não tinha (nem poderia ter) um programa definido, uma vez que expressava a insatisfação profunda de amplas parcelas de nossa sociedade não com um governo em particular, mas com a própria ordem social no seu conjunto. Embora sem uma bandeira unificada, Junho foi um movimento essencialmente político, expressão de um vasto e profundo descontentamento existente no seio do povo. Essa é a dialética da vida que tantos não querem (ou não podem) entender. O aumento das passagens, se absurdo, ocorria ano após ano, ritualmente, sem nunca ter provocado manifestações com a magnitude das que vimos em 2013, e voltou a ocorrer depois também sem os mesmos efeitos. A crise econômica, com disparada do desemprego e inflação, não atingira àquela altura os alarmantes níveis atuais. Arriscar uma explicação economicista para aquele movimento, portanto, não nos levaria muito longe.
Deve-se também ressaltar que a realização da Copa das Confederações/futura Copa do Mundo, com seus gastos bilionários, bloqueios de vias e leis de exceção, além da visibilidade que dava às manifestações no exterior, foi outro fator central para a eclosão das Jornadas naquele momento. Não por acaso o grito “Não vai ter Copa!” apareceu nas manifestações como uma síntese de toda aquela indignação com as péssimas condições de vida, e principalmente os serviços públicos precários, oferecidos ao nosso povo. Lembro-me de um cartaz que vi à época, e que me pareceu verdadeiramente genial: Não vai ter Copa, o povo resolveu jogar.  
A ação educa, como falava o grande Lenin, e no curso da luta mesma as massas foram se politizando, aprendendo por experiência própria a diferenciar amigos de inimigos, aprendendo a precisar os alvos da sua fúria, como não tardou a acontecer com a “todo-poderosa” Rede Globo, expulsa do meio das manifestações sob o grito de: A verdade é dura, a Rede Globo apoiou a ditadura – e ainda apoia!
Significado e limites das Jornadas de Junho
Depois de Junho de 2013, realmente, o Brasil não tem sido o mesmo. As manifestações entraram na ordem do dia, tornaram-se um fenômeno do cotidiano, e não apenas nos maiores centros urbanos. Cresceu a politização da sociedade em geral, e todas as forças que buscam intervir na realidade veem-se obrigadas a apelar para a mobilização popular. Disso não se depreende, todavia, que a grande energia das massas liberada desde então será necessariamente canalizada para a esquerda. Ora, seria agir como idealistas esperar que as coisas já nascessem prontas. Entre a queda do velho e a ascensão do novo permeia um tempo de lutas, indefinições, avanços e recuos. Como dizia o Presidente Mao, não há que temer as grandes tormentas, pois é através delas que as sociedades humanas têm avançado ao longo dos tempos.
Sem resolver o problema da vanguarda revolucionária, capaz de dirigir num rumo correto os levantamentos populares, seu desfecho não pode deixar de ser ou a mera troca de um governo por outro, ou um banho de sangue, como registra tantas vezes a história; sem solucionar essa questão crucial, nenhum levantamento, por mais heroico e massivo que seja, pode triunfar. Outro problema candente é o da aliança operário-camponesa, afinal, um levantamento insurrecional na cidade, desprovido de retaguarda e apoio ativo por parte das massas do campo – as mais oprimidas de nossa sociedade – será facilmente isolado e esmagado pela reação, como prova a história de todas as revoluções do século XX.
Muitos acreditavam, sobretudo entre as correntes filiadas ao anarquismo, que as ondas de lutas poderiam prolongar-se indefinidamente, mais ou menos impunemente, esquecendo-se que há uma minoria privilegiada que se beneficia diretamente da ordem econômico-social iníqua que temos, e que está disposta a defendê-la a ferro e fogo. Afinal, o aparelho de Estado que as oligarquias que nos dominam secularmente construíram à sua imagem e semelhança, que tem nas forças armadas a sua medula, está aí para resguardar os intocáveis interesses daquelas classes, como comprova a trajetória do nosso País carente de revoluções triunfantes.
As manifestações de rua, assim como as greves, são um fator bastante importante no processo geral de elevação da consciência de classe dos oprimidos, e os revolucionários devem aí atuar com toda energia, sob pena de converterem-se nuns doutrinários inofensivos. Tampouco podem superestimar essas formas de luta, uma vez que, por si só, são incapazes de alterar as bases reais do sistema de dominação contra o qual se chocam. A revolução futura será algo bastante mais complexo, sem dúvida nenhuma.
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Notas

1 -  Link em: http://esporte.uol.com.br/ultimas/2009/10/02/ult58u1761.jhtm
2 -  Ver “Jornal da Globo”, edição de 12/06/2013.
3 - Link em: www1.folha.uol.com.br/opiniao/2013/06/1294185-editorial-retomar-a-paulista.shtml
4 - Ver “Brasil Urgente”, edição de 13/06/2013. Desconcertado com o fracasso da sua manipulação, o apresentador comentou: “Entre bandido e polícia, prefiro a polícia. Entre o povo e polícia, prefiro o povo”.
5 - O discurso mais emblemático nesse sentido foi dado pela filósofa e ideóloga petista Marilena Chauí, que em palestra para oficiais da PM do Rio de Janeiro disse que os black bloc’s agiam com “inspiração fascista”.

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