Reproduzimos a seguir o importante artigo da escritora indiana Arundhati Roy, publicado em 30 de agosto de 2018, que trata da grave situação política na índia e denuncia a crescente criminalização da luta popular pelo velho Estado indiano. O texto original encontra-se disponível no sítio: countercurrents.org/2018/08/31/metoourbannaxal-arundhati-roy/
por Arundhati Roy*
Os jornais desta manhã (30 de agosto de 2018) esclareceram algo que temos debatido desde há algum tempo. Uma reportagem de primeira página no Indian Express diz "Da polícia para o tribunal: Os detidos fazem parte da conspiração antifascista para derrubar o governo". Somos informados agora que enfrentamos um regime o qual sua própria polícia chama de fascista. Na Índia de hoje, pertencer a uma minoria é um crime. Ser assassinado é um crime. Ser linchado é um crime. Ser pobre é um crime. Defender os pobres é conspirar para derrubar o governo.
Quando a polícia de Pune realizou ataques simultâneos às casas de conhecidos ativistas, poetas, advogados e padres por todo o país, e prendeu cinco pessoas – defensores dos direitos civis e dois advogados – sob acusações ridículas, com pouca ou nenhuma base legal, o governo sabia que provocaria indignação. Ele já teria levado em conta todas as nossas reações, incluindo esta conferência de imprensa e todos os protestos que ocorreram por todo o país antes de efetuar este movimento. Então, por que isto aconteceu?
Análises recentes de dados de eleitores reais, bem como o inquérito do Lokniti-CSDS-ABP "Estado de espírito da nação" mostraram que o [partido] BJP1 e o primeiro-ministro Narendra Modi estão perdendo popularidade em um ritmo alarmante (para eles). Isto significa que estamos entrando em tempos perigosos. Haverá tentativas implacáveis e contínuas de desviar a atenção das razões dessa perda de popularidade e dividir a crescente solidariedade da oposição. Será um circo contínuo a partir de agora até as eleições – prisões, assassinatos, linchamentos, ataques a bomba, ataques de bandeira falsa2 , motins, progroms3. Aprendemos a relacionar a temporada eleitoral com o início de todos os tipos de violência. Dividir e Dominar, sim. Mas acrescentar a isso: Desviar e Dominar. A partir de agora e até as eleições não saberemos quando, onde e como a bola de fogo cairá sobre nós, nem qual será a natureza dessa bola de fogo. Assim, antes de falar acerca das prisões de advogados e ativistas, deixem-me apenas reiterar alguns pontos que não devem distrair-nos, mesmo enquanto chove fogo e estranhos eventos acontecem.
Passou-se um ano e nove meses desde o dia 8 de novembro de 2016, quando o primeiro-ministro Modi apareceu na TV e anunciou a sua política de desmonetização de 80% do dinheiro em circulação. Seu próprio gabinete pareceu ter sido apanhado de surpresa. Agora, o Banco de Reserva da Índia anunciou que 99% do dinheiro retornou ao sistema bancário. O The Guardian no Reino Unido informa hoje que esta política provavelmente liquidou 1% do Produto Interno Bruto (PIB) do país e custou aproximadamente 1,5 milhão de empregos. Enquanto isso, apenas a impressão de nova divisa custou ao país várias dezenas de milhões de rúpias4. Após a desmonetização, veio o Imposto sobre Bens e Serviços – um imposto estruturado de maneira a desferir um novo golpe aos pequenos e médios negócios que já cambaleavam com a Desmonetização.
Enquanto as pequenas empresas, os comerciantes e acima de tudo os pobres sofriam enormemente, várias corporações próximas ao BJP multiplicaram sua riqueza várias vezes. Empresários como Vijay Mallya e Nirav Modi foram autorizados a fugir com milhões de rúpias de dinheiro público enquanto o governo desviava o olhar.
Que tipo de responsabilização podemos esperar de tudo isso? Nenhuma? Zero?
Através de tudo isso, quando se prepara para a eleição de 2019, o BJP emergiu como de longe o partido político mais rico da Índia. Escandalosamente, os títulos eleitorais recentemente introduzidos garantem que as fontes da riqueza dos partidos políticos possam permanecer anônimas.
Todos nós recordamos a farsa em Mumbai no evento "Make in India", inaugurado pelo sr. Modi em 2016, no qual um incêndio intenso pôs abaixo a tenda principal daquele festival cultural. Bem, a fogueira real da ideia do "Make in India" é o acordo do caça de combate Rafale, que foi anunciado pelo primeiro-ministro em Paris aparentemente sem o conhecimento do seu próprio ministro da Defesa. Isto contraria todos os protocolos conhecidos. Sabemos o essencial – um acordo já estava em vigor em 2012 sob o governo do [partido] do Congresso a fim de comprar aviões que seriam montados pela Hindustan Aeronautics Limited. Aquele acordo foi abandonado e reconfigurado. A Hindustan Aeronautics foi cirurgicamente extirpada. O Partido do Congresso, assim como vários outros que estudaram o acordo alegaram corrupção em uma escala inimaginável e questionaram o envolvimento no negócio de "compensações" para a Reliance Defense Limited, a qual nunca na sua vida construiu um avião.
A oposição exigiu uma investigação do Comitê Parlamentar Conjunto. Podemos esperar por um? Ou devemos engolir toda essa frota de aviões junto com tudo o mais e nem mesmo arrotar?
A investigação da polícia de Karnataka sobre o assassinato do jornalista e ativista Gauri Lankesh levou a várias prisões que, por sua vez, levaram à revelação das atividades de várias organizações de direita do Hindutva, como a Sanathan Sansthan. O que emergiu foi a existência de uma rede terrorista sombria e completa, com listas de alvos, esconderijos e casas seguras, cheias de armas, munições, planos de bombardeamento para matar e envenenar pessoas. Quantos desses grupos conhecemos? Quantos continuam a trabalhar em segredo? Com a certeza de que eles têm as bênçãos dos poderosos e possivelmente até da polícia, que planos eles têm reservado para nós? Que ataques de bandeira falsa? E quais deles são os reais? Onde irão ocorrer? Será na Caxemira? Em Ayodhya? No Kumbh Mela? Quão facilmente poderiam sabotar tudo – tudo – com alguns ataques importantes, ou mesmo menores, que sejam ampliados pela mídia domesticada? Para desviar a atenção disto, a ameaça real, temos o tom e o choro sobre as recentes prisões.
A velocidade com que instituições educacionais estão sendo desmanteladas. A destruição de Universidades, com bons antecedentes, a ascensão de universidades fantasmas que existem apenas no papel. Isto é certamente o mais triste de tudo. Isto está acontecendo de várias maneiras. Estamos assistindo a JNU – Jawaharlal Nehru University – que está sendo destruída diante dos nossos olhos. Os alunos, assim como o corpo docente estão sob ataque contínuo. Vários canais de televisão têm participado ativamente na propagação de mentiras e vídeos falsos que puseram em risco a vida de estudantes, e a uma tentativa de assassinato do jovem acadêmico Umar Khalid que foi impiedosamente difamado e caluniado. Então temos a falsificação da história e a idiotização dos planos de estudo – o que, daqui a alguns anos, levará a uma espécie de cretinismo do qual seremos incapazes de nos recuperar. Finalmente, a privatização da educação está desfazendo até mesmo o pouco de bem feito pela política da Reservação. Estamos testemunhando a re-Brahmização da educação, desta vez ajustada com roupas corporativas. Estudantes Dalit, Adivasi e OBC estão mais uma vez sendo expulsos das instituições de ensino porque não podem pagar as taxas. Isso já começou a acontecer. É totalmente inaceitável.
Sofrimento maciço no setor agrícola, número crescente de suicídios de agricultores, linchamento de muçulmanos e o implacável ataque aos dalits, a flagelação pública, prisão de Chandrashekhar Azad, líder do Bhim Army que ousou enfrentar ataques de castas superiores. A tentativa de diluir a casta programada e a Scheduled Tribes Atrocity Act.
Dito isto, chego às recentes prisões.
Nenhuma das cinco pessoas que foram presas ontem, Vernon Gonsalves, Arun Ferreira, Sudha Bhardwaj, VaravaraRao e GautamNavlakha – estiveram presentes no comício Elgar Parishad que aconteceu em 31 de dezembro de 2017, ou no comício do dia seguinte quando aproximadamente 300 mil pessoas, principalmente Dalits, reuniram-se para comemorar o 200º aniversário da vitória na [batalha] de Bhima–Koregaon. (Os Dalits juntaram-se aos britânicos para derrotar o opressivo regime Peshwa5. Uma das poucas vitórias que os Dalits podem celebrar com orgulho.) O Elgar Parishad foi organizado por dois eminentes juízes aposentados, o Juiz Sawant e o Juiz Kolse Patel. O comício do dia seguinte foi atacado pelos fanáticos do Hindutva, o que levou a dias de tumultos. Os dois principais acusados são Milind Ekbote e Sambhaji Bhide. Ambos estão ainda foragidos. Depois de um FIR [First Information Report] registrado por um dos seus apoiantes, em junho de 2018, a polícia de Pune prendeu cinco ativistas, Rona Wilson, Sudhir Dhawle, Shoma Sen, Mihir Raut e o advogado Surendra Gadling. Eles são acusados de tramar atos de violência no comício e também de conspirar para matar o primeiro-ministro Narendra Modia. Estão em custódia, acusados sob a draconiana Lei de Prevenção de Atividades Irregulares. Felizmente ainda estão vivos, ao contrário de Ishrat Jahan, Sohrabuddin e Kauser Bi, os quais anos atrás foram acusados do mesmo crime – mas não viveram para assistir a um julgamento.
Tem sido importante para os governos, tanto o da UPA6 como o [partido do] Congresso do BJP para disfarçar seus ataques aos Adivasis, e agora, no caso do BJP, seus ataques aos Dalits, como um ataque aos "maoístas" ou "naxalitas". Isto acontece porque, ao contrário do caso dos muçulmanos que foram quase apagados da aritmética eleitoral, todos os partidos políticos consideram o eleitorado Adivasi e Dalit um banco de votos em potencial. Ao prender ativistas e chamá-los de "maoístas", o governo consegue minar e insultar a aspiração dalit dando-lhe outro nome – enquanto ao mesmo tempo parece ser sensível às "questões dalits". Hoje, enquanto falamos, existem milhares de pessoas presas por todo o país, pessoas pobres e desfavorecidas, lutando por suas casas, por suas terras, por sua dignidade – pessoas acusadas de sedição e, pior, a definharem sem julgamento em prisões lotadas.
A prisão destas dez pessoas, três advogados e sete ativistas bem conhecidos serve também para cortar a populações inteiras de pessoas vulneráveis qualquer esperança de justiça ou representação. Porque estes eram os seus representantes. Anos atrás, quando o exército de vigilantes chamado Salwa Judum foi criado em Bastar e entrou em fúria, matando pessoas e incendiando aldeias inteiras, o Dr. Binayak Sen, então secretário-geral da PUCL (Peoples Union for Civil Liberties) [Associação popular pelas liberdades civis, em português] falou pelas vítimas. Quando Binayak Sen foi preso, Sudha Bhardwaj, advogado e líder sindical que trabalhou na área durante anos, ocupou seu lugar. O professor Saibaba, que fez campanha implacável contra as operações paramilitares em Bastar, defendeu Binayak Sen. Quando eles prenderam Saibaba, Rona Wilson, o defendeu. Surendra Gadling era o advogado de Saibaba. Quando eles prenderam Rona Wislon e Surendra Gadling, SudahBhardwaj, GautamNavlakaha e os outros se levantaram por eles ... e assim por diante.
Os vulneráveis estão sendo envoltos num cordão de segurança e silenciados. Os que vociferam estão sendo encarcerados.
Deus nos ajude a obter o nosso país de volta.
* Escritora, proeminente democrata e ativista popular indiana, Arundhati Roy dedica-se à defesa dos direitos dos povos tribais e à denúncia dos ataques do velho Estado indiano contra o povo, como a Operação 'Caçada Verde'. A escritora ganhou o prêmio Booker Prize em 1997 por seu primeiro livro, O Deus das Pequenas Coisas. O seu último livro publicado em português é O Ministério da Felicidade Suprema .
Notas da Redação de AND:
1 - Sigla original do partido populista arquirreacionário 'Bharatiya Janata Party' (“Partido do Povo Indiano”, em português), que gerencia atualmente o velho Estado da Índia.
2 - Expressão oriunda do inglês "false flag attack" que designa operações conduzidas por governos, corporações, indivíduos ou outras organizações que aparentam ser realizadas pelo inimigo de modo a tirar partido das consequências resultantes.
3 - Perseguição contra um grupo étnico ou religioso promovido pelas "autoridades" locais que consistem em ataques violentos e maciços contra pessoas, com a destruição simultânea do seu ambiente (casas, negócios, centros religiosos).
4 - Nome dado à moeda em circulação na Índia.
5 - Regime monarca opressor controlado pela família Peshwa que dominou a Índia por cerca de 100 anos no século XVIII.
6 - Sigla em inglês que designa a "United Progressive Alliance" (Aliança Progressiva Unida, em português). "Coalizão" de partidos reacionários indianos formada após a farsa eleitoral de 2004 naquele país.
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