Repercutimos
Nota do Instituto Carioca de Criminologia - ICC que critica o pacote
draconiano elaborado por Sergio Moro, atual Ministro da Justiça.
Nós do CEBRASPO
reiteramos o conteúdo exposto na nota produzida pelo ICC e convocamos
todas as entidades democráticas e progressistas a repudiarem este pacote
que apenas vai aumentar a violência do velho estado contra as massas
mais profundas de nosso país.
Abaixo reproduzimos a nota na íntegra:
O Instituto Carioca de Criminologia, por decisão unânime de sua Diretoria, vem a público manifestar-se nos termos que seguem.
O anteprojeto
de lei recentemente apresentado ao Congresso pelo Ministério da Justiça,
com a pretensão de alterar diversos dispositivos legais que disciplinam
o direito, o processo e a execução penal brasileiros contém material
farto para uma análise jurídica aprofundada, da qual a academia
brasileira certamente se ocupará ao seu tempo. Sem prejuízo disso, o
Instituto Carioca de Criminologia, na perspectiva de enriquecer o debate
e qualificar as reflexões sobre o tema, apresenta desde logo algumas
observações, a recomendar que o anteprojeto seja objeto de escrutínio
amplo e cauteloso.
É uma prática
saudável e usual que projetos de lei com origem no Poder Executivo e de
natureza reformista sejam formatados por juristas ou comissões de
juristas nomeados especialmente para esta finalidade. Não é o que
acontece com o presente anteprojeto, que parece ter sido obra exclusiva
do Ministro da Justiça. Conhecer os verdadeiros autores de uma alteração
legislativa tão profunda e estrutural, suas influências e posições
políticas, é providência que enriqueceria a crítica.
Em linhas
gerais, o anteprojeto apresentado é uma dose mortal de mais do mesmo. Há
cerca de duas décadas a legislação penal brasileira vem sendo retalhada
por reformas que têm apostado todas as suas fichas na criação de novos
tipos penais, elevação de penas e endurecimento de regimes prisionais.
Essa aposta reiterada tem na chamada “guerra às drogas” seu exemplo mais
eloquente. Os indicadores de violência do período, apenas para ficar
nos dados mais frios e estatísticos, são a prova do fracasso dessa
política.
É perceptível e
chocante o esforço do anteprojeto no sentido de concentrar poderes nas
mãos dos juízes, como se as circunstâncias experimentadas nesta quadra
histórica não fossem sugestivas exatamente do contrário, de um pacto
republicano que promovesse o reequilíbrio entre os poderes, reduzindo o
enorme protagonismo que o Judiciário vem ostentando. O efeito suspensivo
dos recursos deixa de ser uma questão de legalidade e passa a ficar
completamente subordinado ao campo de discricionariedade dos juízes
(arts. 421, §§ 3º e 6º, 617, § 1º, 637, §§ 1º e 2º, do CPP). As
alterações propostas neste item estão em conflito aberto com o princípio
da presunção de inocência, de base constitucional indiscutível, e
estabelecem uma espécie de roleta, em que apenas réus agraciados por uma
distribuição afortunada serão tratados como inocentes até o trânsito em
julgado de suas ações. Para além de contrariar dispositivo expresso da
Constituição de 88 (art. 5º, inc. LVII), soa oportunista a pretensão de
usar a base parlamentar do governo para se antecipar a uma decisão que o
Supremo Tribunal Federal está em vias de proclamar, sob condições
preocupantemente dramáticas. Se já não estivesse explícito, o
dispositivo que equipara “condenação em segunda instância” ao “trânsito
em julgado” (art. 164, da LEP), para fins de extração de certidão, é a
digital de uma tendência política colocada em movimento com o propósito
de neutralizar uma cláusula pétrea e violar a hierarquia normativa.
A alteração
proposta ao artigo 421 do Código de Processo Penal, que retira o efeito
suspensivo dos recursos interpostos em face da decisão que encaminha o
réu para julgamento perante o Tribunal do Júri, ignora o elevado
percentual de decisões de pronúncia que são reformadas em segunda
instância. Reduz a segurança jurídica e tem o potencial de criar
situações inusitadas, em que o Estado terá submetido ao Tribunal do Júri
réus que acabaram sendo impronunciados em razão do provimento de seus
recursos. A drástica redução da esfera de incidência dos embargos
infringentes (art. 604, § 1º, do CPP) é outra proposta que não responde a
nenhuma razão de ordem prática ou fenômeno social. Qual a necessidade
de acabar com garantias previstas na legislação para estabelecer
proteção a cidadãos que porventura se encontrem na posição de réus? A
que interesses atendem tantas medidas de espoliação de direitos?
Anda bem o
anteprojeto na alteração proposta quanto ao artigo 23, §§ 1º e 2º do
Código Penal e teria andado melhor se, no lugar de “violenta emoção”,
houvesse inscrito “perturbação de ânimo”, que é a locução doutrinária e
internacionalmente consagrada. A redução de pena sugerida contempla
qualquer réu, não apenas o agente de segurança pública, e reconhece
circunstâncias específicas (medo, surpresa e violenta emoção) que devem
ser objeto de valoração jurídico-penal, proporcionando penas mais
adequadas ao caso concreto. O mesmo não se pode afirmar quanto ao artigo
25, incisos I e II do Código Penal, que reedita, apenas para agentes de
segurança pública, a legítima defesa presumida, que teve assento remoto
na legislação penal brasileira (art. 35, § 1º, do Código Penal de 1890)
e era utilizada para tornar impune aquele que matava o ladrão noturno.
Esse dispositivo fere o racional de normas domésticas e internacionais
orientadas por premissas exatamente opostas: agentes de segurança
pública, porque mais preparados e treinados no uso e manuseio de armas
de fogo e em situações de confronto, se submetem a regras de legítima
defesa mais restritivas. O Código de Conduta para Funcionários
Encarregados de Cumprir a Lei da ONU, adotado por sua Assembleia Geral
em 17 de dezembro de 1979, estabelece que “os funcionários responsáveis
pela aplicação da lei só podem empregar a força quando tal se afigure
estritamente necessário e na medida exigida para o cumprimento do seu
dever” (art. 3º). Considera o emprego de armas de fogo, mesmo nos casos
de legítima defesa, “medida extrema”, determinando que “devem fazer-se
todos os esforços no sentido de excluir a utilização de armas de fogo” e
que, “em geral, não deverão utilizar-se armas de fogo, excepto quando
um suspeito ofereça resistência armada, ou quando, de qualquer forma
coloque em perigo vidas alheias e não haja suficientes medidas menos
extremas para o dominar ou deter” (art. 3º, “c”). Essas regras foram
explicitamente adotadas no Brasil, através da Portaria Interministerial
nº 4.226, de 31.dez.10. Tal Portaria submete o emprego de força por
agentes de segurança pública aos princípios da “legalidade, necessidade,
proporcionalidade, moderação e conveniência” (item 2), e só faculta o
disparo de arma de fogo “em caso de legítima defesa própria ou de
terceiros” (item 3), dentre outras restrições pertinentes. A lei nº
13.060/2014 também proíbe expressamente o uso de arma de fogo contra
pessoa em fuga ou veículo que desrespeitou bloqueio da via, desde que
não se apresente risco imediato à vida ou à integridade física do
policial ou de terceiros (art. 2º, § único, incs. I e II). Execuções
policiais sumárias promovidas sob o disfarce dos “autos de resistência”,
dramática realidade dos centros urbanos brasileiros à qual o
anteprojeto provê considerável cobertura, constituíram o objeto da
sentença condenatória proferida pela Corte Interamericana no Caso Favela
Nova Brasília em 16.fev.17. Segundo seus itens 17 e 20,
respectivamente, “o Estado deverá adotar as medidas necessárias para que
o Estado do Rio de Janeiro estabeleça metas e políticas de redução da
letalidade e da violência policial, nos termos dos parágrafos 321 e 322
da presente Sentença” e “o Estado deverá adotar as medidas necessárias
para uniformizar a expressão ‘lesão corporal ou homicídio decorrente de
intervenção policial’ nos relatórios e investigações da polícia ou do
Ministério Público em casos de mortes ou lesões provocadas por ação
policial. O conceito de ‘oposição’ ou ‘resistência’ à ação policial
deverá ser abolido, no sentido disposto nos parágrafos 333 a 335 da
presente Sentença”. Neste particular, o anteprojeto caminha na contramão
de um problema brasileiro crônico – que demanda remédio, e não
estímulo.
As mudanças
pretendidas no artigo 33, § 5º, e 59, § único, do Código Penal e artigo
2º, § 6º, da Lei nº 8.072/90 são outros expedientes que hipertrofiam o
poder dos juízes. O emprego de conceitos vagos e indeterminados na
definição de regimes prisionais viola o princípio da legalidade e
habilita o magistrado a fixar quase qualquer pena, como se operasse na
condição de legislador. Ressuscitar-se o conceito frustrado de criminoso
habitual (ou por tendência) é sintoma de grave cegueira teórica, com
inegável potencial de abarrotar ainda mais as cadeias brasileiras, que
já constituem “estado de coisas inconstitucional”, conforme declarado
pelo Supremo Tribunal Federal nos autos da MCADPF 347.
O exotismo do
anteprojeto ficou por conta do artigo 1º, inc. III, da lei nº 12.850/13,
cujo conteúdo confere dignidade legislativa a algumas organizações
criminosas existentes em nosso país. No ponto, o rigorismo descritivo
utilizado para apresentar as “facções” de extração popular e originárias
em presídios (PCC, CV, ADA, Terceiro Comando e Família do Norte) não
alcançou também as “Milícias”. O Ministério da Justiça brasileiro não
conhece nenhuma milícia específica ou pretendeu tratá-las como um mal
menor, designando como espécie o que na verdade é gênero. As milícias
são manifestações perigosas do sistema penal subterrâneo e sua
capacidade de influenciar o processo eleitoral e exercer o poder
político deveria atrair maior atenção da cúpula do executivo federal,
independentemente de suas afinidades ideológicas.
Sobre “medidas
para elevar penas em crimes relativos a armas de fogo”, é preciso
recordar a decisão que o povo brasileiro proclamou após o resultado do
referendo de 2005, que negou vigência ao artigo 35 da lei nº 10.826/03
(“É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o
território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6º desta
Lei”). A vitória do “não” deveria ter conformado toda a legislação
criminal correlata para que, daquele momento em diante, a posse ou o
porte de armas fossem enquadrados não como crimes, mas no máximo como
contravenções penais. Não é possível compatibilizar a vedação popular ao
proibicionismo com dispositivos legais que criminalizam a posse ou o
porte de artefatos cuja comercialização foi expressa e soberanamente
autorizada.
A medida
proposta no artigo 91-A do Código Penal ostenta indisfarçável natureza
confiscatória, da qual poucos brasileiros escaparão se submetidos às
agruras do processo criminal. Os “critérios” para perdimento de produto
do crime não guardam relação necessária com o delito que motivou a
condenação, viabilizando uma devassa patrimonial na vida de todo aquele
que for condenado à infração a qual a lei comine pena máxima superior a
seis anos. Em termos mais simples, pretende-se exigir que todo cidadão
brasileiro mantenha contabilidade rigorosa de sua evolução patrimonial
durante a vida, de tal forma que, instado pela justiça criminal, esteja
sempre em condições de comprovar correspondência absoluta entre
patrimônio e ganho declarado, sob pena de ter que entregar propriedades
privadas ao Estado. Quer-se, também, atribuir a juízes o poder de
escolher a destinação de obras de arte ou outros bens de relevante valor
cultural ou artístico cujo perdimento haja sido decretado (art. 124-A),
como se o concurso público para ingresso na magistratura atestasse o
domínio desse tipo de conhecimento. Espera-se que essa proposta não
tenha sido escrita com a finalidade de legalizar ato pretérito de um
agente político que, outrora juiz, encaminhou a um determinado museu
obras de arte apreendidas no curso de processo criminal.
O artigo 133-A
está em linha com os propósitos declarados de atribuir efeitos de
definitividade a decisões provisórias, disciplinando o uso de bens
apreendidos no curso de processos judiciais por órgãos de segurança
pública. Como poderá acontecer com a execução provisória da pena de
multa (art. 50, do Código Penal) e a venda antecipada de bens que
sofreram perdimento (art. 133, do Código de Processo Penal), o uso e a
deterioração de coisas retiradas da posse de pessoas processadas e ainda
sem condenação transitada em julgado criarão um passivo potencialmente
considerável para a União e Estados. Para muito além de mitigar o
princípio da propriedade privada (art. 170, inc. II, da CR/88), tão caro
aos liberais-conservadores, a medida joga a União e os Estados no polo
passivo de inúmeras ações indenizatórias que certamente serão ajuizadas.
Alterações
legislativas promovidas para “evitar a prescrição” são medidas que, no
fundo, atentam contra o princípio constitucional da duração razoável do
processo (art. 5º, inc. LXXVIII). O Estado brasileiro gasta cerca de
1,4% do seu PIB com o Poder Judiciário. A julgar pela quantidade de
recursos que consome, é de se esperar que a justiça criminal consiga
entregar respostas satisfatórias e em prazo adequado, sem que o
legislador tenha que regulamentar restritivamente o instituto da
prescrição.
A criação de
nova hipótese de resistência qualificada (no caso de resultado morte ou
risco de morte do funcionário ou de terceiro, art. 329, §2º), com penas
que variam de 6 a 30 anos, é desnecessária porque o vigente § 2º do
artigo 329 já prevê o concurso material entre a resistência e o crime
correspondente à violência. Além disso, tal pretensão legislativa
afronta o princípio da proporcionalidade, ao buscar cominar para um
crime qualificado pelo resultado, no qual o dolo está presente na ação
típica antecedente, sendo o resultado geralmente atribuído ao seu autor a
título de culpa, uma escala penal comparável à do homicídio
qualificado, em que o resultado morte é evidentemente doloso.
As medidas
propostas para introduzir soluções negociadas no processo penal, também
conhecidas e propagadas como plea bargain, não são propriamente uma
novidade – abrigam-nas, de certa forma, a lei nº 9.099/95 – e coroam a
importação acrítica de institutos norte-americanos para o direito
brasileiro. A solução negociada, a depender do contexto em que está
inserida, da densidade democrática do sistema de justiça criminal
respectivo e de sua estrutura normativa, pode não ser um mal em si. Nos
Estados Unidos da América, por exemplo, onde mesmo assim ela é alvo de
muitas críticas, o plea bargain convive ao lado da garantia do júri
popular, cuja competência é muito mais abrangente que a de seu congênere
brasileiro. Inserir o plea bargain, à revelia de estudo aprofundado,
numa realidade como a nossa, de desrespeito reiterado ao princípio da
paridade das armas, de sucateamento das defensorias públicas e de juízes
pouco comprometidos com os valores democráticos pode significar pura,
simples e cruel antecipação da pena, atingindo até mesmo réus inocentes.
Pretende-se
criar hipótese de vedada responsabilidade penal objetiva no artigo
350-A, §§ 1º e 2º do Código Eleitoral. O terceiro que doa, contribui ou
fornece recursos a candidatos que os contabilizam paralelamente não pode
responder pelos atos do donatário; tampouco o podem os órgãos da
direção partidária. O crime somente pode ser atribuído a quem lhe deu
causa (art. 13, “caput”, do CP). A circunstância de haver doado recursos
ou de integrar órgão de direção partidária vinculado ao candidato que
executa a contabilidade paralela não basta para fins de imputação
jurídico-penal.
Em oração
sugestiva de generosidade, compromisso público e certa dose de
complacência, o anteprojeto, no que propõe para o artigo 3º, §5º da lei
nº 11.671/08, preceitua que “as gravações de atendimentos de advogados
(nos presídios federais) só poderão ser autorizadas por decisão judicial
fundamentada”. O uso do advérbio “só” faz parecer ao leitor incauto
que, previamente ao anteprojeto, o ordenamento tolerava gravações de
atendimentos de advogados sem autorização judicial, o que não é verdade.
Conversas havidas entre clientes e advogados são cobertas pelo manto da
confidencialidade (arts. 133 e 5º, inc. LV da CR/88 e art. 7º, inc.
III, da Lei nº 8.906/94), da mesma forma como se protegem as confissões
em ambientes religiosos e as sessões de terapia psicológica ou
psicanalítica. A propósito, é preciso avisar aos padres, pastores e
ministros, às sociedades de psicanálise e aos conselhos de psicologia
acerca da possibilidade do uso desse dispositivo, por analogia, em seus
espaços de assistência. Está-se propondo a relativização de um sigilo
essencial ao estado democrático de direito, sem o qual o processo penal
se transforma em jogo de cartas marcadas, com desprezo absoluto pela
defesa.
Porque outorga
poderes mais abrangentes e efetivos aos membros do Poder Judiciário, o
anteprojeto certamente será bem recebido pela magistratura. Será também
festejado pelo Ministério Público, que disporá de instrumentos
investigatórios e processuais ainda mais invasivos, disputando versões e
promovendo acusações em condições mais favoráveis. Será ótimo para a
“indústria do controle do crime”, construtores e gestores de
penitenciária e donos de empresas de tecnologia da segurança. Oferecerá
horizontes de negócios inimagináveis, com perspectiva crescente de
lucros baseados no comércio do controle social da pobreza. E ao
contrário do que pensam alguns, será igualmente bom para os advogados,
que terão mais clientes com a expansão do sistema penal ora proposta,
assim como significativo espaço, nas inconsistências e fragilidades do
anteprojeto, para questionamentos jurídicos procedentes. Será péssimo,
entretanto, para a cidadania, que terá suprimido rol significativo de
direitos e garantias individuais, em favor de um Estado que parece
definitivamente empenhado em substituir políticas sociais por política
criminal de baixa qualidade e procedência ignorada.
Nilo Batista
PRESIDENTE
Vera Malaguti de Souza Weglinski Batista
SECRETÁRIA EXECUTIVA
André Filgueira do Nascimento
DIRETOR-TESOUREIRO
Rafael Caetano Borges
DIRETOR-SECRETÁRIO
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