Trump eleito, o que virá agora?
Nossa análise das eleições norte-americanas
A essência do imperialismo ianque, baluarte da reação mundial e inimigo número um dos povos do mundo, não se altera de nenhuma maneira com a eleição de um presidente do partido dito democrata ou republicano. Como sublinhava o grande Lênin, o imperialismo não é uma política, mas o estágio do capitalismo caracterizado pelo predomínio dos monopólios e pela tendência à reação e à violência. Numa palavra, o imperialismo é a guerra, ele dizia. Basta ver a atitude do insepulto Biden diante do genocídio palestino, cujo apoio ao projeto colonialista sionista tenha sido quiçá sem precedentes. Nem mesmo a mudança da embaixada dos Estados Unidos em Jerusalém, definida por Trump no seu primeiro mandato, foi revertida pelo mandatário senil. Daí, se vê o quão cínica e mesmo odiosa foi a campanha com o slogan “freedom” conduzida por Kamala Harris, ela própria, uma promotora e depois congressista das mais hostis à população pobre e negra norte-americana. Esse cinismo não passou despercebido, pois, em um país no qual o voto é facultativo, a mobilização dos eleitores joga um papel decisivo, e tudo indica que a alta abstenção foi maior precisamente entre os sufragistas do Partido Democrata.
Supor que as atuais contradições vigentes no mundo se alterarão bruscamente pela eleição de Trump seria um erro, crasso e inaceitável, concebível apenas por reformistas que perderam qualquer compromisso com a luta consequente, mesmo por direitos democráticos em sentido estrito – pois estes se conquistam, e não se imploram de algum amo qualquer.
Isto não significa que seria indiferente a eleição de Trump ou Kamala, como tampouco seria a de Bolsonaro no Brasil em 2022. É preciso ver as situações em seu contexto específico, e o que assistimos na verdade foi um amplo rechaço da população norte-americana ao sistema político do seu país, rechaço este capturado por um plutocrata de extrema-direita, eleito agora com predominância no voto direto e maioria na Câmara, Senado e Suprema Corte. Pode-se pensar em uma correlação entre a crise da hegemonia norte-americana e a decadência da democracia burguesa no interior do país, com a ascensão de um politiqueiro fascista que concentrará poderes como nenhum outro incumbente nas últimas décadas. Nesse sentido, a relação entre o atual mandato de Trump e o de Biden ou Kamala – e mesmo o seu primeiro mandato – é a de uma distinção radical. Presume-se, dentro dos Estados Unidos, à medida que recrudesçam as deportações e brutalidades policiais contra os mais pobres, e mesmo a reversão de direitos civis básicos, um verdadeiro tufão de mobilizações populares nos próximos anos. É por isso, e não por uma difusa filiação a teses identitárias, que a dita “intelligentsia” liberal, concentrada nos monopólios de comunicação, opta em maioria pelos candidatos ditos “progressistas” (direitistas perfumados ou social-democratas): estes são os que oferecem menos turbulência para a administração ordinária dos negócios capitalistas.
Vejamos, por exemplo, a mais candente questão do mundo atual, a causa Palestina. A eleição de Trump encoraja o prosseguimento da agressão sionista e torna ainda mais improvável qualquer solução diplomática para o conflito que seja benéfica para a resistência. Israel seguirá agindo como um porrete nas mãos do imperialismo ianque, usado para forçar os regimes que lhe são hostis à capitulação ou a uma negociação desvantajosa. De outro lado, a tendência que se viu nos últimos anos, de uma implosão dos fóruns “multilaterais” (como a ONU) em favor de uma espécie de lei do mais forte escancarada, tende a se agravar, o que pode gerar exatamente o efeito contrário do proferido por Trump em campanha: maior, e não menor escalada das guerras mundo afora e consequente envolvimento dos ianques nelas, embora pela via prioritária das guerras por procuração. Seguirão se acumulando extraordinários materiais inflamáveis no Oriente Médio e a radicalização do discurso de Trump contra o Irã pode, no lugar de fortalecer a capitulação deste regime, como pretendido, alimentar as forças mais anti-estadunidenses em Teerã e estreitar seus vínculos com a Rússia. Não esqueçamos que foi Trump quem ordenou o assassinato do general da Guarda Revolucionária Iraniana Qassem Soleimani em abril de 2020, gerando uma crise sem precedentes recentes entre os dois países. Nesse sentido, é possível que Trump busque retomar os acordos entre Arábia Saudita e Israel, valendo-se das contradições entre aquele país e o Irã, o que no entanto será muito difícil de se obter enquanto persista a guerra de agressão em Gaza, pelo repúdio que geraria entre os povos árabes. À invencível resistência palestina cabe resistir e reunir suas forças quase sobre-humanas para sustentar o esforço de guerra em condições adversas, situação que de resto tem sido o seu pão de cada dia desde a Nakba em 1948. Na verdade, uma particularidade da resistência palestina, incluindo o Hamas, em comparação com outras organizações que compõem o chamado “eixo da resistência”, tem sido a relativa independência que mantém frente a diferentes potências mundiais e regionais, bem como a habilidade com que se utiliza das suas contradições em favor dos interesses nacionais. Nada possuindo de si, nada entrega e nada negocia: esta é a tragédia e ao mesmo tempo a força da resistência palestina, uma espécie de “proletariado” no interior do sistema estatal contemporâneo.
Sob Trump, a pugna com a China tende a se agravar. Do ponto de vista ianque, a tentativa de pôr fim à guerra de agressão russa contra a Ucrânia, numa saída de humilhação nacional desta, com perda de território em favor de Putin (Trump bravateou que acabaria com a guerra “em um dia”), busca encerrar uma frente europeia a fim de se concentrar na Ásia. Assim, Trump buscaria arrancar uma espécie de neutralidade de Putin, para afastá-lo ou pelo menos matizar a sua aliança com Xi-Jinping. É possível que as provocações envolvendo a questão de Taiwan tenham novos capítulos à frente, e não se deve descartar que a China, por sua vez, tente dar o troco, aproveitando o dito “protecionismo” de Trump para avançar sua penetração econômica e politica não só na região como na África e América Latina, através de diferentes “parcerias” (leia-se: a exportação de capitais típica de uma potência imperialista emergente). É da natureza do imperialismo a luta pela hegemonia, e qualquer subestimação da ambição chinesa para fazê-lo, qualquer análise que exagere o aspecto “cooperação” na relação Estados Unidos-China ou congele a atual superioridade norte-americana ao invés de vê-la dentro de um contexto histórico, econômico, político e militar dinâmico – a China já é a segunda maior fabricante de armamento militar no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e já à frente da Rússia – seria antidialética em teoria e oportunista em política, uma vez que flertaria com a ideia de um “ultra imperialismo”. Essa disputa pela hegemonia se agravará nos próximos anos, como uma lei de ferro, e é certo que os países da Ásia, África e América Latina continuarão a ser zonas de fricção mundial e de tempestades revolucionárias, destacadamente a Ásia.
Sobre esta última questão, abramos um parêntese. Precisamente na Ásia, se concentra enorme tradição de luta revolucionária, maiores forças comunistas organizadas (incluindo as diversas organizações maoistas clandestinas na própria China, mas também no Nepal, em Bangladesh etc), destacadamente as guerras populares nas Filipinas e na Índia. Aí também ocorrem poderosos movimentos de libertação nacional, como na Caxemira. Não são organizações fictícias, mas os principais polos de mobilização revolucionária na atualidade, ainda que com diferentes níveis de desenvolvimento. Ou seja, nesta parte do globo confluem fatores objetivos e subjetivos extraordinários, a descortinar gigantescas perspectivas para as lutas revolucionárias nas próximas décadas. Ressaltamos a particular importância, nesse contexto complexo, de celebrar os vinte anos de fundação do Partido Comunista da Índia (Maoista), não só de suas ações como de suas formulações, que são na atualidade uma espécie de “âncora estratégica da revolução mundial”.
Finalmente, a vitória de Trump encoraja as forças mais militaristas, racistas e chauvinistas mundo afora. Na verdade, a ascensão destas forças proto ou mesmo inteiramente fascistas numa série de países, incluídos países imperialistas (haja vista o seu recrudescimento na própria Alemanha, sintomático na medida em que aí também foi mais agudo do que em qualquer outro país o trauma da sua ação), não é acidental e indica o amadurecimento de uma nova guerra imperialista mundial, ainda que a sua eclosão a curto prazo não pareça o cenário mais provável – embora nenhum marxista consequente possa descartá-la enquanto exista o sistema imperialista, o que seria revisar de um modo descarado as formulações de Lênin e de Mao. Isso ocorre porque do ponto de vista desses próprios países, a única alternativa econômica a essa guerra seria praticar uma tal espoliação contra seus trabalhadores “nacionais” que os empurraria para a guerra civil. Nos países dominados (ausente o aspecto, para eles vedado, de disputa por hegemonia mundial), a ascensão deste novo fascismo se volta mais extremadamente ainda contra o “inimigo interno”, está associada ao saqueio impiedoso das reservas naturais e da força de trabalho locais em favor de uma ou outra potência, saqueio este cada vez menos compatível com formas democrático-liberais de governo, que aí já são frágeis por definição.
No caso do Brasil, a tendência que vimos nas últimas eleições, tanto nacionais quanto municipais, de expressiva votação da extrema-direita (em que pese a derrota de Bolsonaro, condicionada em grande medida pelos efeitos econômicos da pandemia), se fortalece para o próximo pleito presidencial. O governo de Lula/PT promete reagir aos ventos do norte indo ainda mais à direita, de modo a acalmar os “mercados”, com brutal corte de “gastos” (na verdade, os mínimos investimentos sociais) e capitulação às forças reacionárias do “centrão” (em essência, aliança do latifúndio, dos financistas e dos pistoleiros clericais). Com isso, frustrará sua base social, já grandemente desmobilizada, mas não ganhará tampouco a confiança de vastos setores sensibilizados pela propaganda “antissistema” bolsonarista, que independe da própria figura de Bolsonaro. Este é um caso clássico em que a criação se libertou da criatura, embora esta siga sendo relevante. Mudando o que deve ser mudado, aquela frustração foi a razão essencial da derrota de Kamala e da vitória de Trump, inclusive entre camadas historicamente leais ao partido dito democrata daquele país. Enfim, no Brasil, a possibilidade de a extrema-direita recobrar forças aumentará no curto prazo a disputa pela liderança no seu seio, o que tende a torná-la mais e não menos agressiva, ao contrário do que dizem (mais pregam do que creem) os analistas burgueses.
Diante deste cenário, o que se coloca para os estudantes, trabalhadores e intelectuais populares é vincular-se cada dia mais aos pobres do campo e da cidade; construir poderosos movimentos em defesa de terra, trabalho, moradia, transporte, educação, saúde, lazer, cultura etc; explicar aos pauperizados e descontentes, através de palavras simples e de atos, que a sua rebelião é justa e não pode ser canalizada pelos fascistas, pois estes são na verdade os seus piores inimigos; demonstrar que a alternativa à falida democracia burguesa é a Revolução de Nova Democracia. É preciso fazer das escolas e universidades grandes bastiões das ideias avançadas e convocar a juventude a que se some em massa às fileiras revolucionárias. Também se reveste de enorme importância o manejo correto da frente única, contra a guerra imperialista a nível mundial e contra o fascismo, o racismo e o militarismo no interior dos países, frente única que só pode cumprir um papel efetivo se estiver sob a hegemonia do proletariado. A política de apaziguamento praticada pelos liberais burgueses e pelos seus acólitos oportunistas não contém, senão alimenta os setores mais reacionários. Estes só podem ser barrados por uma forte mobilização popular. O reformismo, nas suas formas eleitoreiras ou supostamente “radicais”, é uma impossibilidade tanto teórica como prática: é tempo de radicalização da luta de classes em toda a linha.
Novo MEPR – 7 de novembro de 2024.
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