Tuesday, November 18, 2025

Brasil - PL "Antifacção": entre o populismo carcerário e a impunidade seletiva

  • Revolucao cultural

Pós Operação Contenção na Penha/Alemão (RJ) vs Pós Operação Carbono Oculto na Faria Lima (SP)
Pós Operação Contenção na Penha/Alemão (RJ) vs Pós Operação Carbono Oculto na Faria Lima (SP)

O triunvirato Guilherme Derrite, Tarcísio de Freitas e Hugo Motta, patrocinador do Projeto de Lei chamado “Antifacção” no Congresso Nacional, viu frustrada sua tentativa de equiparar o crime de tráfico de drogas a terrorismo. Menos pela pressão dos movimentos populares – eles próprios divididos, uma vez que parte da esquerda institucional capitulou totalmente ao punitivismo penal em troca de votos – que de setores das classes dominantes, preocupados com a insegurança jurídica que tal equiparação poderia produzir. No caso de cada jovem pobre e morador de favela, recrutado para o tráfico, ser considerado terrorista, seria de se supor que o Brasil fosse considerado o maior celeiro do tipo no mundo, com consequências funestas para a “credibilidade” do país e possíveis sanções e mesmo intervenção de potências estrangeiras (leia-se: Estados Unidos).


Na prática, as penas para o crime de tráfico e associação ao tráfico se tornam muito mais draconianas, imprescritíveis e com uma virtual obstrução à progressão de regime. Uma vez que o Brasil possui atualmente 800 mil presos e presas em regime fechado, muitos dos quais acusados por delitos relacionados à lei de drogas (entre as mulheres o índice é superior a 50%), trata-se em essência tal PL de uma ampliação do velho veneno de lotar as cadeias e a persecução penal contra os excedentes da produção capitalista. Veneno que tem sido o paradigma do “combate ao crime” no período posterior ao regime militar. Ele criou e alimenta as chamadas facções com uma quantidade crescente de recrutas: aquelas, na sua origem, eram simplesmente associações legítimas de detentos para humanizar os horrores do sistema prisional. Com o tempo, exatamente pela associação com parte do aparato econômico e repressivo do Estado, estas facções se converteram em uma espécie de força auxiliar paramilitar responsável por manter a ordem social nos imensos bolsões de miséria brasileiros, movimentando uma economia multimilionária, cuja lucratividade deriva basicamente da sua proibição. Dizer que penas mais longas dissuadirão os jovens de “entrarem pro crime”, sem tocar em nenhuma das perversas distorções estruturais que desembocam no bilionário negócio da droga, é apenas velho vinho em odres novos, que agravará a já abissal criminalização da pobreza.


Como diz o provérbio, é nos detalhes onde o Diabo mora. Ao recuar da tipificação de associação ao tráfico como terrorismo, o relator Derrite incluiu no PL certos jabutis que limitavam a participação do Ministério Público e da Polícia Federal na investigação das chamadas facções. No caso da PF, ela só poderia intervir se solicitada pelos governadores, que se tornariam desse modo verdadeiros donatários com plenos poderes nas suas províncias. O uso político das polícias civil e militar para perseguir movimentos de oposição e adversários seria intensificado, assim como a proteção aos bandidos de estimação dos palácios. O escárnio era tão evidente, que o cara de pau teve de recuar ainda outra vez. Mas a essa altura já estava claro que o problema do crime, segundo os dignitários palacianos, não é a sua natureza em si –embora astronômicos, os valores movimentados pelo tráfico de drogas e de armas são singelos se comparados às negociatas lícitas ocorridas no Congresso a título de emendas ou dilapidação do Erário sob a rubrica de concessões e renúncias fiscais ao agronegócio, mineradoras etc –, mas sim a que classe social pertence o criminoso. Como bem diz o jurista e magistrado Luis Carlos Valois, em seu trabalho “O direito penal da guerra às drogas”:


“Esse excesso de leis penais, surgido para resolver todos os problemas, cria um leque de possibilidades de repressão à polícia que, paralelamente, fica impossibilitada de fazer cumprir todas as leis: ‘o número e o alcance das leis penais garantem que policiais e promotores não façam valer todas as leis como estão escritas’. Soma-se à inflação de leis penais a existência, entre elas, de leis punindo a simples posse de algo e está formado um espectro de medo generalizado. Um medo que se retroalimenta na medida em que, apesar de a sociedade ter medo da polícia, pede mais polícia, a elaboração de mais leis penais, mais crimes e mais prisões”.  


Portanto, quanto maior o endurecimento penal, maior a abrangência da corrupção e da punição seletiva: ela recairá sobre os marginalizados de sempre e as suas famílias, agravando o ciclo que tem numa cela superlotada seu penúltimo nível, sendo a execução extrajudicial seu termo. Quanto aos criminosos de colarinho branco, se eventualmente processados e condenados, terão respeitadas todas as garantias previstas na Constituição e nos Tratados Internacionais.


Esse projeto de lei não tem efetividade contra o PCC, Comando Vermelho e outros, exatamente porque não busca ampliar o cerco aos que de fato financiam toda sua cadeia de sustentação, que é o capital financeiro, a classe politiqueira mais rasteira e os próprios agentes do Estado reacionário, sem cujo concurso nem a mercadoria nem os fuzis para protegê-la chegariam às favelas das metrópoles brasileiras.


É preciso que façamos uma ampla e permanente campanha de luta política junto aos trabalhadores: nada tem de paradoxal que uma sua parcela adira ao discurso de lei e ordem, pois os pobres são também as maiores vítimas da criminalidade, cujas práticas ordinárias não alcançam os ricos superprotegidos em suas bolhas de segurança. Deve-se dizer que a polícia não é um instrumento isento –como tampouco o Ministério Público ou o Judiciário– mas um aparato de coerção voltado principalmente contra os próprios trabalhadores e seus familiares. São um verdadeiro muro de segregação social. De fato, ninguém imaginaria uma incursão de Caveirões ou a troca indiscriminada de tiros em bairros nobres de qualquer cidade. Foi esse populismo carcerário-assassino e sua abordagem sobre (in)segurança pública que chocou o ovo da serpente bolsonarista no Brasil. Ao mesmo tempo, os movimentos populares devem ficar em guarda, pois foi esta mesma lei de associação criminosa, agora endurecida, que levou para a prisão dezenas de ativistas nas jornadas de 2013 e 2014. Nada pode ser mais fácil para um governo reacionário e seus apaniguados do que dizer que a divisão interna e a organização inerente a qualquer associação política se equipara a uma “organização criminosa”. Basta que a luta de classes se intensifique, para que este entulho punitivo revele e mobilize todos os seus tentáculos, voltados, em última instância, contra a ação e organização popular.


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